quarta-feira, outubro 25, 2006

Noronha do Nascimento contra lixo processual


Noronha do Nascimento, que ontem tomou posse como presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), exigiu “coragem política” para “limpar o excesso do lixo processual” e centrou a crise da Justiça fora dos tribunais, designadamente na “política de concessão de crédito que levou ao endividamento familiar” e que entope o sistema judicial com acções de dívida.

O saneamento das acções de dívida e a reformulação do mapa judiciário foram as duas principais soluções apontadas pelo 36.º presidente do STJ para superar a morosidade processual, num discurso de 22 páginas no qual foi evidente a concordância com o programa do Governo para o sector da Justiça, excepto no que diz respeito ao princípio das carreiras planas dos juízes.

O juiz-conselheiro do Porto, eleito quarta figura da hierarquia do Estado com 53 dos 72 votos possíveis, considerou que os agentes económicos “instrumentalizam os tribunais para cobrar os seus créditos”, num ciclo onde “só os credores recebem e o cidadão comum nada obtém”. Noronha classificou a subida “abrupta” dos processos cíveis, com taxas “impensáveis”, como “o monstro que nos inferniza”, lembrando que há pendências de “milhares e milhares de dívidas”, atribuindo o problema às seguradoras, telemóveis, cartões de crédito “e assim sucessivamente”.

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"Hoje, o bloqueio do judiciário é também o resultado de uma política de concessão de crédito ao consumo que levou longe o endividamento familiar visível nas acções de dívida que canibalizam e corroem totalmente os tribunais, representando mais de metade dos processos pendentes no país", disse o novo rosto do quarto poder perante uma assembleia de cerca de 500 convidados que tornaram pequeno e quente o salão nobre do STJ. Noronha Nascimento esteve quase duas horas a receber cumprimentos dos amigos e entidades institucionais, com o Governo representado pelo ministro da Justiça Alberto Costa, acompanhado dos seus dois secretários de Estado, Conde Rodrigues e Tiago Silveira.

Mas antes não poupou nos recados ao poder político, incitando-o a ter a coragem de impor regras às empresas financeiras. E contou um curioso episódio: "Quando em Maio de 1998 participei em Paris em reuniões preparatórias de um colóquio, e contei o que se passava entre nós com a colonização do judiciário pelas operadoras de telemóveis, com dezenas de milhares de acções cíveis entradas em juízo em pouco tempo, os juízes franceses e alemães presentes perguntavam-se, espantados, como foi possível tal acontecer sem o poder político pedir contas aos agente económicos, autores desse flop".

Neste sentido, o novo presidente do STJ, eleito a 28 de Setembro em lista única com 53 votos de um universo de 72 votantes, pediu uma revisão da política de concessão de crédito. "Sem isto não vale a pena chorar lágrimas de crocodilo, pois os tribunais só funcionarão se houver a coragem política de os limpar do 'lixo processual' que tudo entope, agindo a montante deles e regulando o comportamento dos agentes no mercado da concessão de crédito ao consumo", disse, lembrando que as acções para cobrança de dívida começaram a invadir os tribunais em 1987: "Começou-se com as seguradoras, seguiram-se os leasings, os cartões de crédito, os telemóveis, a TV cabo, a netcabo...".

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O juiz afirmou ainda que o mapa dos tribunais está “mais do que ultrapassado”, sublinhando que as assimetrias entre Litoral e Interior criaram “dois mapas”: o dos tribunais sobrecarregados e outro onde há um funcionamento equilibrado. “Torna-se essencial criar uma nova unidade geográfica [...] mais ampla” , disse Noronha do Nascimento, frisando que a par desta reforma devem ser repensados os julgados de paz.

O conselheiro, que sucede a Nunes da Cruz na presidência do Supremo, falou ainda numa “deslegitimação surda dos tribunais”, à qual, considerou, não escapa o STJ: “Processo filtrado, com frequência, em notícias vindas a lume na Comunicação Social e que só podem ser lidas como mensagem criptada de poderes fácticos.”

Num discurso muito elogiado por todos, aplaudido de pé pelas cerca de três centenas de pessoas que encheram o salão nobre, Noronha lembrou o seu percurso de quase 40 anos nos tribunais – “davam para uma obra-prima cinematográfica do neo-realismo italiano” – contando ainda alguns episódios caricatos, como o do réu que ia ser absolvido e que morreu à sua frente.

“O Supremo fica muitíssimo bem entregue”, disse Nunes da Cruz. “Todos temos esperança de que esta eleição represente uma lufada de ar fresco”, afirmou Santos Bernardino, vive-presidente do Conselho Superior da Magistratura.

DISCURSO DIRECTO

"Os tribunais só funcionarão se houver a coragem política de os limpar do lixo processual que tudo entope."

"A fluidez do Judiciário depende de uma política que se situa fora dos tribunais e que contende com interesses e peso de agentes económicos que instrumentalizam o Judiciário para cobrar os seus créditos formigueiros."

"As acções executivas estão literalmente bloqueadas, só os grandes credores recebem enquanto o cidadão comum nada obtém."

"Os agentes económicos abusam dos tribunais com o seu crédito malparado."

Fontes: Correio da Manhã e Diário de Notícias
(Foto: José Carlos Carvalho - DN)

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