quinta-feira, outubro 26, 2006

Talvez reduzir despesa pública na justiça


Diogo Lacerda Machado
Barrocas Sarmento Neves, sociedade de advogados

"Entre o encavacamento do pacto e os constrangimentos ditados pelas notícias trazidas pela proposta de Orçamento do Estado, talvez possamos ser este ano dispensados de ouvir as tradicionais e desgraçadas reivindicações de aumento da despesa pública com o sistema judicial. Além de servirem como pretexto dissimulador de várias irresponsabilidades, o que há nelas de mais detestável é a limitadora afirmação ínsita de que um aumento do gasto do Estado é condição necessária para a melhoria da justiça. Filiadas na mesma lógica que só exige mais dos mesmos meios obsoletos para alimentar os mesmos procedimentos arcaicos, propondo a cultura do absurdo em que mais da mesma oferta só estimula mais da mesma procura, ainda sobressai nessas reivindicações a indisponibilidade para procurar fazer melhor pensando e escolhendo fazer diferente.

Há muito que estou convencido de que, independentemente da inultrapassável necessidade de redução geral da despesa do Estado, é perfeitamente viável e obviamente exigível que também na justiça se faça muito mais e melhor com os mesmos ou até com menos recursos económicos.

Mas, percebendo o que neste âmbito é realmente decisivo e orientador, a determinação dos recursos adequados para assegurar maior proficiência deve ser o resultado e não o princípio de um conjunto de novas escolhas sobre os vários modos possíveis, o sentido e o alcance da actuação do Estado na justiça. Isto é, uma nova política económica para a justiça supõe uma prévia reorientação e reescalonamento nas prioridades da aplicação dos recursos colectivos. E aqui é preciso fazer escolhas políticas bem sérias: importa, por exemplo, escolher uma nova distribuição de competências entre o que é público e o que é privado, criando novos subsistemas e outros graus de participação cívica, responsabilidade individual e contribuição económica dos cidadãos e das expressões da sociedade civil na justiça; escolher acabar com centenas de milhar de processos cíveis em que não há, realmente, nenhuma controvérsia jurídica que justifique a intervenção dos tribunais do Estado e escolher mudar radicalmente os procedimentos a adoptar nos que remanesçam; escolher concentrar recursos assim libertos na realização efectiva da lei penal, recompondo e requalificando profundamente a investigação e a acusação criminal; escolher outro sistema penitenciário, com novas vias de reacção e aumento da reclusão domiciliária; escolher a racionalidade preventiva da inserção às onerosas tentativas de reinserção reactiva; e, já agora, escolher o caminho da reconciliação do Estado com a ideia primordial de justiça que impõe que acabemos com a iniquidade do insultuoso desprezo que dedicamos às vítimas de crimes enquanto nos comprazemos investindo nos jogos de poder em torno do arguido e dos profissionais do foro."

in Diário de Notícias

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