sábado, outubro 28, 2006

A propósito da recusa do vice-PGR


João Correia
Advogado e membro do Conselho Superior do Ministério Público eleito pela AR

"Já poucos se lembram do Estatuto Judiciário em vigor desde (curiosamente) 24 de Abril de 1962 (DL 44 278). Já não serão tão pacíficas as motivações de quem quer regressar a uma organização castrense do Ministério Público. Quem defende um "comandante" para o MP ignora a história das instituições. Quem viu na recusa de um vice- -PGR crise de autoridade agiu sob impulso.

Nos idos de 1962, o PGR era nomeado por decreto do Governo e substituído pelo mais antigo dos adjuntos, desde que o impedimento não excedesse 30 dias. Se superior, o ministro nomearia substituto. Era esta a visão do "comandante" do MP.

Ocorre o 25 de Abril e o DL 917/76, de 31/12, inverte a lógica: o PGR passa a ser substituído pelo vice-PGR nomeado pelo CSMP sob proposta do PGR, que, para tal, apresenta lista de três nomes. No mesmo sentido, a Lei 39/78, de 5/7, mantém a nomeação do vice-PGR pelo CSMP mas com a limitação deste órgão de não poder vetar mais que dois nomes.

Atalhando razões: o actual estatuto do MP (Lei 47/86, de 15/10, última redacção Lei 60/98, de 27/8) mantém o regime saído do 25 de Abril, pelo que o vice-PGR é nomeado pelo CSMP sob proposta do PGR, "não podendo o Conselho Superior do Ministério Público vetar mais de dois nomes". Torna-se claro que o PGR tem de apresentar três nomes e que o CSMP tem de ter a faculdade de os hierarquizar.

O vice-PGR não é figura menor. Atente-se no facto de ser o substituto do PGR, para se concluir que a escolha não pressupõe exclusivamente a confiança deste, embora tal seja nuclear. O que está em causa é o CSMP deter competência para a nomeação do vice-PGR ou abandonar a dupla vinculação.

Afigura-se-me que a legitimidade do vice- -PGR perante o CSMP e perante os magistrados carece da intervenção deste órgão. Abandonada a nomeação pelo CSMP, enfraquece-se tal legitimidade. O PGR é nomeado pelo PR sob proposta do Governo e daí decorre a sua legitimidade. Se o vice-PGR for designado unilateralmente pelo PGR, a sua legitimidade é subjectiva e não passa de longa manus do PGR. Se querem ousar nessa destruição, que o façam, mas não de ânimo leve. Significará a minimização do CSMP ou a deslegitimação do vice-PGR. Há que fazer opções.

A visão catastrófica provinda de um acto normal em democracia só pode ter um significado: o PGR não deve ser um magistrado com autoridade democrática e o actual estatuto deveria conferir-lhe poderes insindicáveis, banalizando as competências do CSMP e afunilando nele as competências próprias de um hierarca absoluto. A visão assim assumida impediria que um magistrado judicial ou um advogado pudessem ocupar o cargo de PGR, pois que o comandante de uma unidade militar não pode ser um civil, assim como o comandante de uma unidade de cavalaria não pode ser um oficial de artilharia.

Os que interpretaram a banalíssima manifestação de vontade negativa de CSMP como um sinal de crise esquecem as reais debilidades actuais do MP, que se viu esvaziado de competências no inquérito criminal. A burocratização da magistratura do MP e a neutralização dos advogados no processo criminal destruíram por dentro, progressivamente, a cidadania, seja no processo criminal seja nos tribunais.

O antibiótico para a crise cívica não exige que se confiram mais poderes ao PGR, que os tem e oxalá os exerça. A grande reforma no processo criminal - e não só no MP - exige:

1. Introdução do contraditório no inquérito.

2. Órgãos de Polícia Criminal dirigidos pelo MP (de facto dirigidos).

3. Que o magistrado que investiga assegure a direcção do processo do inquérito ao julgamento.

4. Verificação da eficácia fiscalizante dos juízes de instrução criminal, como verdadeiros garantes das liberdades fundamentais.

5. Consagração de um verdadeiro estatuto para os advogados e para os cidadãos em toda a tramitação do processo criminal.

6. Criação de um outro modelo para a fase da instrução criminal.

7. Revisão do Código de Processo Penal, com respeito por estes pressupostos.

8. Outra organização judiciária, com esgotamento útil dos meios actualmente existentes.

São estas as questões centrais. Como se vê, o episódio da recusa de um nome (prestigiado) para vice-PGR não pode ser destacado como qualquer sinal de crise, a não ser que se queira destruir a autonomia dos magistrados do MP. Para isso, reponha-se em vigor o Estatuto Judiciário: seria mais rápido e claro e o "comandante" deveria ser escolhido de entre os apaniguados do antigo regime...

PS: Aproveito para informar que votei contra o nome proposto pelo PGR. Embora acreditando no alto gabarito curricular do magistrado proposto, entendi que o facto de o PGR ser magistrado judicial, acrescido do facto de o proposto vice-PGR estar longe, há muito, do concreto exercício da magistratura do Ministério Público, não garantiria um pleno governo desta magistratura. Como se vê, as interpretações dadas a esta votação, pelo menos na parte que me diz respeito, nada têm a ver com qualquer afrontamento com o conselheiro Pinto Monteiro."

in
DN Online

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