quinta-feira, outubro 26, 2006

Ficções


Por Eduardo Dâmaso
(
Editorial Diário de Notícias)

"Uma das ficções criadas com a votação do Conselho Superior do Ministério Público, que chumbou o nome de Mário Gomes Dias para vice-procurador, é a de que os nove votos contra seriam, no essencial, a expressão corporativa da reacção dos magistrados do Ministério Público (MP) presentes neste órgão. Alinhados com o respectivo sindicato, sacaram do voto e dispararam contra o alvo intermédio, para atingirem o próprio procurador-geral.

As leituras políticas sobre a justiça estão a sobrepor-se a toda a racionalidade. Os alinhamentos estão radicalizados e cada uma das barricadas tem os respectivos cães de guarda. Dos jornais à blogosfera, tem-se escrito coisas impensáveis por manifesto desconhecimento, mera estratégia de ataque ou pura ânsia de notoriedade. O Governo, também ele, parece estar a muito pouco de perder a cabeça, se é verdade que tenciona alterar os poderes do Conselho Superior do Ministério Público no sentido de os reduzir a questões teóricas e disciplinares. A ser assim, não é uma reacção saudável da parte do Governo, que, se o fizer, revela ter do acto legislativo uma concepção de mero instrumento de poder, coisa típica das maiorias absolutas com mais soberba ou mesmo de estados totalitários, o que não é o caso.

No meio desta confusão há perguntas simples cuja resposta é essencial: os nove votos foram mesmo só dos magistrados? Em caso afirmativo, correspondeu essa convergência a um alinhamento corporativo para atingir Pinto Monteiro, só porque se trata de um magistrado judicial? As respostas só os próprios as podem dar, mas, desde logo, não é óbvio que os quatro procuradores distritais tenham votado contra. Ou que, caso o tivessem feito, isso ocorresse no diabólico contexto de uma reacção corporativa. Quase todos eles são pessoas muito imbuídas da lógica hierárquica do MP e nada alinhadas com discursos sindicais. Depois, não é óbvio que outros membros do Conselho, incluindo pessoas nomeadas pelo Parlamento, não tenham votado contra. De resto, sem pôr em causa a seriedade do magistrado Gomes Dias, há que dizer que a boa razão para votar contra não está em ter sido indicado por alguém que se queira atacar. Isso seria mesquinho! A boa razão está no facto de ter passado 20 anos a servir profissionalmente o Bloco Central no Ministério da Administração Interna, em que é frequente ser necessário invocar a razão de Estado para fazer coisas nem sempre benéficas para a cidadania. Onde as razões de Estado nem sempre convergem com as razões da justiça. Como se viu no julgamento da vertente portuguesa do famoso caso GAL. E é esta confusão ou ambiguidade que não é admissível na Procuradoria-Geral da República."

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