sexta-feira, junho 30, 2006

Tráficos


António Vitorino
Jurista

"Duas notícias recentes chamaram a atenção pelo seu significado contrastante. A primeira relatava um aumento do consumo da cocaína em Portugal, ao mesmo tempo que o nosso país figurava em primeiro lugar nas quantidades apreendidas no último ano. A segunda referia um relatório do organismo especializado na luta contra a droga das Nações Unidas que considerava estar em queda, também no último ano, o volume de droga que circula à escala global e que entra nos países mais desenvolvidos.

As duas notícias, à primeira vista, não batem certo. Ou talvez, no fundo, acabem por convergir, porque isto de estudos estatísticos tem muito que se lhe diga...

O debate público sobre a temática da droga, por via de regra, é hegemonizado pela política sobre o consumo, dividindo-se as opiniões entre abolicionistas e proibicionistas. Sendo um debate muitas vezes nacional, acaba sempre por bater no ponto da natureza transnacional do fenómeno do tráfico e dos limites de acção de cada Estado nacional no respectivo combate.

Políticas de consumo e combate ao tráfico inserem-se assim num continuum, embora tenham alcances distintos e as responsabilidades pela sua condução não se situem ao mesmo nível.

Sem prejuízo de uma certa vigilância mútua incentivada pelas Nações Unidas, as decisões sobre o consumo são essencialmente tomadas a nível nacional. Por contraste, a identificação das redes de tráfico e o combate à sua actividade por natureza transnacional depende, cada vez mais, da cooperação internacional e da acção conjunta e conjugada das forças de polícia e dos tribunais de vários países.

A dificuldade de encontrar plataformas de acção conjunta neste domínio resulta, por um lado, da sofisticação dos meios usados pelos traficantes, respaldados num potencial financeiro que lhes advém dos lucros fabulosos que obtêm, e, por outro, da projecção que diferentes políticas de consumo têm na luta contra o tráfico, designadamente naquela linha de fronteira difícil de traçar entre drogas duras e "as outras".

Para tornar o panorama mais complexo pondere-se que às drogas ditas "clássicas", devidamente identificadas e classificadas segundo padrões internacionais, acresce a proliferação de novas drogas, ditas sintéticas, muitas delas fabricadas por processos laboratoriais relativamente artesanais e acessíveis nos próprios países de consumo, bem como a diversificação dos próprios padrões de consumo, aumentando o número dos denominados "policonsumidores", isto é, de toxicodependentes que gerem (?) a sua dependência em função de um cocktail de drogas de que resulta mais difícil estabelecer o seu perfil para efeitos de prevenção e de tratamento, numa óptica de saúde pública e individual.

O combate ao tráfico de droga tem assentado, pois, quer na coordenação internacional, quer na intervenção sobre o elo final da cadeia, o momento da entrada no circuito lícito dos seus proventos, designadamente através dos instrumentos jurídicos internacionais de luta contra o branqueamento de capitais.

Na perspectiva da investigação e punição dos responsáveis pelo tráfico releva ainda a apreensão do produto do crime em sentido lato, designadamente dos bens utilizados para o tráfico e dos bens adquiridos através dos lucros retirados desse mesmo tráfico. No espaço europeu há mais de dois anos foram adoptados instrumentos jurídicos destinados a uniformizar as condições de congelamento e de apreensão dos proventos do crime e a agilizar o reconhecimento por um Estado das decisões de congelamento e de apreensão desses mesmos bens decididas por um outro Estado membro da União Europeia.

Os resultados desta acção conjunta dependem da troca de informações entre polícias, onde desempenha um papel central a Europol, agência europeia de polícia, com sede em Haia, Holanda, bem como da concreta coordenação de acções policiais de detecção e apreensão da droga traficada.

Importa, contudo, reconhecer que o tráfico de droga se caracteriza por uma grande flexibilidade e por uma enorme capacidade de mobilização de meios e de agentes à escala planetária. E se é verdade que se registaram alguns progressos no desmantelamento das redes oriundas do Afeganistão e no controlo da via marítima, não é menos verdade que se assistiu a um aumento do tráfico por via aérea, designadamente oriundo de países da América Latina.

Neste contexto, podem ser bem efémeros os progressos assinalados pelas Nações Unidas se a resposta das autoridades não acompanhar a evolução dos fluxos de tráfico e se a capacidade de detecção das redes não contar com a colaboração das forças de segurança dos países de origem e dos países de trânsito.

Um sinal positivo desta tomada de consciência da necessidade de ampliar o espectro de cooperação internacional foi recentemente dado por Cabo Verde, ao manifestar a sua vontade de desenvolver, quer com a União Europeia quer com os Estados Unidos da América, um programa de cooperação na luta contra o tráfico de droga que passa pelo arquipélago, mas que se destina sobretudo aos países europeus. A esta predisposição de cooperação devem agora responder os países europeus com acções concretas, desde logo Portugal, mas também outros países particularmente interessados como a Espanha, que recentemente deu passos nesse sentido, aquando da recente visita a Cabo Verde do seu ministro dos Negócios Estrangeiros."

in Diário de Notícias

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