domingo, fevereiro 25, 2007

Que aconselhamento para a IVG?


José Lamego
Professor da Universidade de Direito de Lisboa
(in
DN Online)

"Com este mesmo título, publicou o dr. Paulo Pinto de Albuquerque, professor da Universidade Católica Portuguesa, na edição de domingo do Diário de Notícias, um interessante artigo contendo propostas sobre a introdução de um sistema de aconselhamento na futura regulamentação legal da interrupção voluntária da gravidez. Pelo muito respeito intelectual que me merece e porque, também, a este propósito tenho ouvido as mais desencontradas e frívolas opiniões, permito-me quebrar uma atitude de silêncio que deveria adoptar enquanto no Parlamento se estudam as soluções para concretizar a indicação consubstanciada nos resultados do referendo de 11 de Fevereiro.

No meu entender, de um ponto de vista de técnica legislativa, o Parlamento deve limitar-se a legislar sobre os requisitos de não punibilidade, acrescentando uma nova cláusula de exclusão de ilicitude, formulada em termos tão próximos quanto possíveis da pergunta submetida a referendo popular. Uma lei sucinta, como a Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, é suficiente para realizar este propósito. No mais, naquilo que diz respeito a aspectos organizatórios e não meramente penais, uma lei subsequente poderá satisfazer melhor os objectivos de uma regulamentação global. Foi essa a técnica legislativa seguida, por exemplo, na Alemanha, onde, para além da introdução no Código Penal de um parágrafo (218) relativo aos requisitos de não punibilidade da interrupção da gravidez e de um outro (219) relativo ao aconselhamento da grávida em situação de necessidade ou conflito, se aprovou uma lei sobre a gravidez de conflito, que complementa a legislação penal e trata de aspectos organizatórios.

Quanto ao período de reflexão, este deve ser, tal como na lei alemã, de três dias (na Holanda é de cinco, na Bélgica é de seis, na Itália e Luxemburgo, de sete dias): de acordo com a pergunta submetida a referendo, o prazo de não punibilidade é de dez semanas e não de 12 semanas, como em muitos desses países; além disso, já na actual legislação se estabelece a antecedência mínima de três dias relativamente à data da intervenção para a prestação do consentimento da mulher grávida para a prática do aborto (n.º 1 do art.º 141.º do Código Penal).

Em relação ao aconselhamento obrigatório como requisito procedimental de não punibilidade e, sobretudo, em relação aos fins e contornos do sistema de aconselhamento é que se tem produzido mais "ruído" no debate público subsequente a 11 de Fevereiro. No elenco das "boas práticas" de regulamentação vigentes nos países da União Europeia, tem havido arrimo frequente ao modelo de aconselhamento da lei alemã. Um conjunto de razões desaconselha, no meu entender, a transposição pura e simples do modelo alemão:

1. O modelo de aconselhamento alemão é muito peculiar e não encontra verdadeiramente paralelo em nenhum outro país: no essencial é, quanto à função, um modelo de aconselhamento "direccionado"e toda a redacção do parágrafo 219 do Código Penal alemão se baseia na ideia de "limite do sacrifício exigível" como fundamento da permissão da interrupção voluntária da gravidez. Tal tem que ver, de um ponto de vista de construção dogmática, com o facto de o modelo alemão de regulamentação da interrupção voluntária da gravidez ser, no fundo, um "modelo das indicações" alargado - alargado a uma indicação de emergência (situação de necessidade ou conflito) - mas, não sendo, por outro lado, esta indicação, a indicação de emergência, sujeita a verificação. A formatação desse modelo no Código Penal e na lei sobre a gravidez de conflito teve origem numa solução compromissória, requerida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão. Mas, repito, é, talvez por isso mesmo, um modelo que não encontra verdadeiramente paralelo em nenhum outro país.

2. O Código Penal alemão remete para a lei sobre a gravidez de conflito a introdução de um sistema de aconselhamento, baseado na instituição e reconhecimento de "centros de aconselhamento de gravidez de conflito" (Schwangerschaftskonfliktberatungsstelle), entidades competentes para a emissão de um certificado de aconselhamento, como requisito procedimental para a permissão da interrupção voluntária da gravidez. A participação de associações católicas na organização e funcionamento desses centros de aconselhamento criou "fracturas" na Igreja Católica alemã, com o Papa João Paulo II a dirigir-se à conferência episcopal, em comunicado datado de 11 de Janeiro de 1998, para que esta desaconselhasse os seus fiéis a participarem em tais centros de aconselhamento e na emissão dos certificados de aconselhamento. A esta luz, é de recomendar prudência em relação a alguns voluntarismos que por aí começam a despontar.

Tudo visto e ponderado, manda a análise e comparação das "boas práticas" que o sistema de aconselhamento a introduzir na futura regulamentação legal da interrupção da gravidez obedeça a alguns parâmetros que, de modo descosido, passo a enumerar:

1. O sistema de aconselhamento deve conceber a função do aconselhamento em termos não direccionados (tal como o fazem, por exemplo, as leis em vigor na Holanda, Suécia, Israel e França). Penso que esta perspectiva é a mais consentânea com o modo como foi formulada a questão submetida a referendo.

Neste particular, o arrimo ao sistema alemão constituiria, na minha opinião, um enxerto desprovido de coerência;

2. O aconselhamento prévio obrigatório, como requisito procedimental de uma interrupção voluntária da gravidez legalmente justificada, deve ser um aconselhamento predominantemente médico. O aconselhamento social, realizado por entidades públicas ou privadas, visando o acompanhamento e ajuda da mulher grávida em situação de emergência ou conflito e a educação da população em matéria de saúde reprodutiva, é bem-vindo e deve ser pautado por uma ideia de liberdade de associação e expressão. Mas este aconselhamento social é distinto do aconselhamento prévio obrigatório, como requisito procedimental de uma interrupção voluntária da gravidez legalmente justificada. Aqui, também, é de afastar, no meu entender, a transposição da solução alemã;

3. O aconselhamento prévio obrigatório deve atender à necessidade de protecção da privacidade e da autodeterminação da mulher, podendo envolver terceiros (v.g. companheiro, familiares ou amigos) somente mediante pedido ou consentimento da mulher.

Estas são algumas notas soltas, que aqui deixo. Elas são inspiradas não somente por aquilo que, de um ponto de vista substantivo, penso serem as soluções mais razoáveis, mas também, e sobretudo, por uma ideia de lealdade procedimental, que obriga a que a legislação a aprovar se coadune o mais fielmente possível com o "sim" à questão que foi submetida a referendo em 11 de Fevereiro."

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