Rui Machete
Advogado
(in DN Online)
"Recordo-me ainda do período em que os juristas italianos sublinhavam a importância assumida pelo direito penal e o seu processo no controlo da administração pública. Tornava-se mais fácil para o activismo dos juízes transalpinos fazer uma indiciação por infracções criminais do que proceder à anulação dos actos viciados nos tribunais administrativos competentes.
Em Portugal, embora presumivelmente com actores diferentes, assiste-se a um fenómeno similar: os políticos em posto praticam actos administrativos em sentido lato e são arguidos por alegados crimes que, com grau maior ou menor de probabilidade, poderão ter realmente cometido.
A frequente constituição de políticos em arguidos significa certamente uma maior atenção do Ministério Público e da Polícia Judiciária à conduta das autoridades eleitas, mas também que os comportamentos destas, em percentagem bastante mais elevada do que no passado, se aproximam demasiado ou preenchem mesmo tipos penais, isto é, são pouco prudentes e avisados ou cometem mesmo crimes.
Temos assim, a um tempo, um sintoma mau, porque há muitas acções ilegais e passíveis de sanção criminal, e um bom, porque esses actos não ficam sem castigo.
Mas, neste problema complexo, que não se circunscreve de resto à corrupção, outras perspectivas merecem também ser consideradas.
Reporta-se a primeira à possibilidade sempre existente de manipulação na constituição de arguidos ou no tempo de duração dos processos, usando o processo penal com desvio de poder.
É uma hipótese que não é possível afastar em absoluto, muito embora a Procuradoria-Geral da República se oriente por princípios que nos merecem confiança.
Em segundo lugar, a divulgação feita pelos órgãos da comunicação social, quantas vezes por razões de mero sensacionalismo, de que alguém com responsabilidade política ou até com simples notoriedade social se tornou arguido, passa, as mais das vezes, a equivaler a uma condenação imediata por parte da opinião pública.
A presunção de inocência, a que todo o acusado tem direito até ser eventualmente condenado, garantia básica do processo penal, esvai-se assim completamente.
Depois, não é a mesma coisa ser alguém acusado por crime financeiro de que não beneficiou, nem ele nem os seus, ou ter-se locupletado à custa do erário público.
Há crimes e crimes e, todavia, a opinião pública, com demasiada frequência, é conduzida a tudo e todos envolver no mesmo labéu infamante.
Por último, tem vindo a generalizar-se um entendimento errado do que é o segredo de justiça e das suas consequências.
Isso mesmo foi recentemente evidenciado na entrevista televisiva dada a quente pelo actual vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, quando se julgou vinculado por aquele segredo nas declarações que prestou ao defender-se das imputações feitas.
A identidade do arguido é publicitada e a da infracção penal igualmente, com maior ou menor rigor, mas predomina o entendimento de que o acusado não pode defender-se quando é imediatamente confrontado perante os órgãos da comunicação social e está impedido de explicar porque entende estar inocente.
O direito fundamental ao bom nome e reputação não pode ser limitado quando lhe são imputados factos e formulados juízos condenatórios por quaisquer regras instrutórias do processo penal por muito operacionais que sejam. É que, mais tarde, o tribunal poderá inocentar o injustamente acusado, mas este foi antecipadamente condenado pelo tribunal da opinião pública em termos dificilmente remediáveis.
Nestes casos, não há em princípio calúnia porque a intenção não era injuriosa, pelo contrário, visava a prossecução dos valores defendidos pelo direito penal, mas, infelizmente, os efeitos devastadores da notícia fazem-se igualmente sentir.
No Estado de direito que a nossa Constituição proclama e que pretendemos construir, há que estar atento a estes possíveis efeitos perversos entre o processo penal e a política de modo a preveni-los ou, pelo menos, minimizá-los. De contrário, muitos cidadãos recearão ser enxovalhados e afastar-se-ão da política. É importante punir quem prevarica, mas não desincentivar a participação activa dos que se preocupam com o bem comum."
Advogado
(in DN Online)
"Recordo-me ainda do período em que os juristas italianos sublinhavam a importância assumida pelo direito penal e o seu processo no controlo da administração pública. Tornava-se mais fácil para o activismo dos juízes transalpinos fazer uma indiciação por infracções criminais do que proceder à anulação dos actos viciados nos tribunais administrativos competentes.
Em Portugal, embora presumivelmente com actores diferentes, assiste-se a um fenómeno similar: os políticos em posto praticam actos administrativos em sentido lato e são arguidos por alegados crimes que, com grau maior ou menor de probabilidade, poderão ter realmente cometido.
A frequente constituição de políticos em arguidos significa certamente uma maior atenção do Ministério Público e da Polícia Judiciária à conduta das autoridades eleitas, mas também que os comportamentos destas, em percentagem bastante mais elevada do que no passado, se aproximam demasiado ou preenchem mesmo tipos penais, isto é, são pouco prudentes e avisados ou cometem mesmo crimes.
Temos assim, a um tempo, um sintoma mau, porque há muitas acções ilegais e passíveis de sanção criminal, e um bom, porque esses actos não ficam sem castigo.
Mas, neste problema complexo, que não se circunscreve de resto à corrupção, outras perspectivas merecem também ser consideradas.
Reporta-se a primeira à possibilidade sempre existente de manipulação na constituição de arguidos ou no tempo de duração dos processos, usando o processo penal com desvio de poder.
É uma hipótese que não é possível afastar em absoluto, muito embora a Procuradoria-Geral da República se oriente por princípios que nos merecem confiança.
Em segundo lugar, a divulgação feita pelos órgãos da comunicação social, quantas vezes por razões de mero sensacionalismo, de que alguém com responsabilidade política ou até com simples notoriedade social se tornou arguido, passa, as mais das vezes, a equivaler a uma condenação imediata por parte da opinião pública.
A presunção de inocência, a que todo o acusado tem direito até ser eventualmente condenado, garantia básica do processo penal, esvai-se assim completamente.
Depois, não é a mesma coisa ser alguém acusado por crime financeiro de que não beneficiou, nem ele nem os seus, ou ter-se locupletado à custa do erário público.
Há crimes e crimes e, todavia, a opinião pública, com demasiada frequência, é conduzida a tudo e todos envolver no mesmo labéu infamante.
Por último, tem vindo a generalizar-se um entendimento errado do que é o segredo de justiça e das suas consequências.
Isso mesmo foi recentemente evidenciado na entrevista televisiva dada a quente pelo actual vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, quando se julgou vinculado por aquele segredo nas declarações que prestou ao defender-se das imputações feitas.
A identidade do arguido é publicitada e a da infracção penal igualmente, com maior ou menor rigor, mas predomina o entendimento de que o acusado não pode defender-se quando é imediatamente confrontado perante os órgãos da comunicação social e está impedido de explicar porque entende estar inocente.
O direito fundamental ao bom nome e reputação não pode ser limitado quando lhe são imputados factos e formulados juízos condenatórios por quaisquer regras instrutórias do processo penal por muito operacionais que sejam. É que, mais tarde, o tribunal poderá inocentar o injustamente acusado, mas este foi antecipadamente condenado pelo tribunal da opinião pública em termos dificilmente remediáveis.
Nestes casos, não há em princípio calúnia porque a intenção não era injuriosa, pelo contrário, visava a prossecução dos valores defendidos pelo direito penal, mas, infelizmente, os efeitos devastadores da notícia fazem-se igualmente sentir.
No Estado de direito que a nossa Constituição proclama e que pretendemos construir, há que estar atento a estes possíveis efeitos perversos entre o processo penal e a política de modo a preveni-los ou, pelo menos, minimizá-los. De contrário, muitos cidadãos recearão ser enxovalhados e afastar-se-ão da política. É importante punir quem prevarica, mas não desincentivar a participação activa dos que se preocupam com o bem comum."
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