domingo, fevereiro 25, 2007

Novas regras no CEJ para formação de magistrados


Está pronto o documento orientador da reforma da Lei do Centro de Estudos Judiciários. Reconhecendo a necessidade consensual de reforma da legislação relativa à formação de magistrados, o documento propõe várias alterações, nomeadamente ao nível das vias de ingresso, da formação inicial e contínua e de estágios de ingresso.

“No que diz respeito à exigência de um período de espera de dois anos a partir da data de licenciatura para ingressar no Centro de Estudos Judiciários e ao momento em que, terminada a formação conjunta, os auditores de Justiça devem optar por uma das magistraturas, o actual regime vem sendo objecto de muitas e profundas críticas”. O documento orientador da reforma da Lei do CEJ reconhece, desta forma, o mal estar e descontentamento que a actual legislação vem provocando no meio judiciário e que motivou o CEJ a realizar uma reflexão interna que culminou numa proposta de alteração profunda do actual diploma, apresentada pela direcção.


“Esta proposta não significa uma alteração de paradigma”, esclarece Anabela Miranda Rodrigues, directora do CEJ. “A matriz do modelo permanece intocada, o que passa por manter a institucionalização e assegurar a autonomia da formação, nos moldes actuais. Esta é a «impressão digital» do nosso modelo, que garante uma formação plural, aberta e democraticamente legitimada. É que não basta afirmar que a realidade social coloca hoje novas exigências aos magistrados a que eles têm de responder. O que é preciso é assegurar as condições efectivas para que possam responder ao constante desafio das novas interpelações e isso passa por garantir que o processo de selecção, recrutamento e formação inicial e contínua de magistrados está resguardado de qualquer movimento que feche as magistraturas obre si próprias. Assim, o que há que introduzir no modelo actual são melhoramentos e inovações que respondam, exactamente, à aceleração das mudanças e à complexidade da realidade social”.

Nesta proposta, aponta-se como missão do CEJ “formar profissionalmente magistrados judiciais para os tribunais comuns e para os Tribunais Administrativos e Fiscais (TAF) e magistrados do Ministério Público”, bem como “assegurar a dimensão internacional da formação de magistrados, nos termos da lei e no quadro da política externa na área da Justiça”, “cooperar em acções de formação jurídica e judiciária de advogados, solicitadores e agentes de outros sectores profissionais da Justiça”, “desenvolver actividades de investigação e estudos judiciários, e assegurar formação de docentes e formadores”.

O enquadramento na lei do CEJ da selecção, recrutamento e formação de juízes para os TAF é defendida no primeiro ponto do documento que aborda precisamente a missão do centro. Na verdade, refere-se, “não se vêem razões de fundo para que o CEJ tenha uma função na formação de magistrados judiciais e outra, substancialmente diferente, na formação de juízes dos TAF”. Até porque, por um lado, e no quadro da nova reforma da Justiça administrativa, se alargaram substancialmente as matérias que integram as competências dos tribunais administrativos, “sendo certo que se torna imprescindível fornecer aos respectivos juízes uma sólida formação de base em sede de Direito Civil e Processual Civil, acentuando-se a vertente da produção e análise da prova e do julgamento”. Por outro lado, e num tempo em que se cruzam e interpenetram nos tribunais – incluindo os administrativos e fiscais – todas as pulsões sociais, “impõe-se também aos juízes dessas instâncias a aquisição de outros e novos saberes – muitos deles já integrantes dos currículos do CEJ –, como sejam, a Ética e Deontologia, Gestão do Tribunal e do Processo, a Psicologia Judiciária, a Contabilidade e Gestão ou a Sociologia”. O que se justifica que se tenha em atenção, esclarece Anabela Miranda Rodrigues, “são as exigências decorrentes da especialização dos TAF, traduzidas num concurso específico e num curso teórico-prático organizado a pensar nessa especialização”.

Em defesa desta alteração, o documento questiona que “se os magistrados que recebem a sua formação profissional no CEJ são colocados, em início de carreira, em tribunais e comarcas de menor movimento e complexidade, mal se compreende que, sendo os juízes dos TAF colocados, imediatamente, em tribunais de círculo, com outro nível de dificuldade, se vejam arredados de uma formação devidamente sistematizada e estruturada, quer na técnica, quer nas diversas áreas do conhecimento que interagem com as suas funções”. Além disso, “face ao património humano e técnico-científico que o CEJ efectivamente detém no campo da formação de magistrados”, chama-se a atenção para que “o caminho proposto se traduz num aproveitamento e rentabilização de recursos”.

O documento reforça ainda a dimensão internacional da formação de magistrados, que hoje já integra o núcleo duro da formação, inicial e permanente, criando uma nova estrutura orgânica nuclear, o Departamento de Relações Internacionais, estrutura responsável por assegurar esta vertente da formação. “É absolutamente necessário estar em condições de responder ao desafio que representa o facto de o magistrado «nacional» ser hoje cada vez mais também magistrado «europeu» e «internacional»”, salienta a directora do CEJ, acrescentando que “por outro lado, a influência do CEJ na Europa alargada e nos PALOP é hoje amplamente reconhecida e a exigir de nós cada vez mais presença, não só ao nível da nossa participação, em certos casos ao nível de direcção, em redes internacionais, mas também em projectos e programas internacionais de formação, que envolvem magistrados e candidatos a magistrados nacionais e estrangeiros. A nossa participação na realização de programas de apoio a entidades de formação estrangeiras — dou-lhe só o exemplo da Rússia, Macedónia, Sérvia e Montenegro ou da Moldávia — é um sinal da projecção internacional do CEJ, que ombreia, neste capítulo, com Espanha, França ou Itália”.

Reestruturação da formação

O ingresso e a formação são, naturalmente, as questões que mais espaço ocupam no documento e em que se propõem várias e significativas alterações. Desde logo a possibilidade de admissão por uma dupla via de ingresso: com base na habilitação académica e com base em experiência profissional. “É hoje generalizadamente aceite que a experiência profissional é um saber a valorizar”, refere-se, pelo que se impõe “a abertura de uma via de ingresso que privilegie um determinado nível de experiência profissional”.

Aliás, “o impulso que a nova realidade que se abre com o Processo de Bolonha confere a esta via de ingresso é indiscutível”, já que um dos seus propósitos é a educação ao longo da vida, significando que “a formação académica assenta na aquisição de competências e no desenvolvimento de potencial de aprendizagem”. A ideia de “aprender fazendo” que subjaz ao ‘novo paradigma’ de Bolonha, fará com que, obtido o grau académico, muitos jovens saiam para o mercado de trabalho, continuando a sua formação com experiência profissional. “É a experiência profissional jurídica, qualificada e relevante, na área forense ou em áreas conexas com a actividade forense que entende dever valorizar-se, quando, dada a complexificação da vida social, económica e cultural, que, cada vez menos, é coberta pelo ensino, se exige hoje, cada vez mais, espaço para aprender e se aprende fazendo”.

“Em qualquer das vias de ingresso, a exigência do mestrado em Direito (2º ciclo) como habilitação académica de base para o acesso à magistratura conjuga-se com as mudanças anunciadas ao nível da formação universitária” explica Anabela Miranda Rodrigues, que assinala “a importância da formação especializada que conduz à obtenção do mestrado, no caso dos estudantes que tenham em vista a magistratura. Esta formação ‘científica’ obtida com o mestrado, por um lado, confere o ‘lastro cultural’ que assegura que, no exercício da sua função, o magistrado salvaguarde a tensão crítica e reflexiva que o preservará da burocratização, e que, por outro lado, completa a formação básica generalista universitária e não substitui a formação ‘profissional’, que é o que está em causa o CEJ assegurar”.

Acentua-se, aliás, na proposta da direcção que “a especialização obtida com o grau de mestre ou a experiência profissional não substituem a preparação técnico-jurídica ou a imersão numa ética identificadora do exercício da função de magistrado, que só a formação profissional orientada especificamente para o exercício de uma certa profissão consegue garantir”. A alteração dos métodos de selecção, numa parte ligada à abertura da nova via profissional de acesso, “obedece ao propósito de fazer uma selecção muito exigente e rigorosa dos candidatos à magistratura”, esclarece Anabela Miranda Rodrigues, que lembra, a este propósito, que “o recrutamento, a selecção e a formação de magistrados, constituem, nos sistemas jurisdicionais europeus continentais, uma das instâncias de legitimação das magistraturas”. Assim, para ambas as vias de ingresso, é “imprescindível” a realização de concurso público e a alteração dos métodos de selecção passa pela realização de um “exame psicológico”, pelo alargamento da regra do anonimato às revisões de prova da fase escrita e pela determinação da classificação final com base na média aritmética simples das classificações obtidas nas fases escrita e oral.
“Esta é uma inovação que reputo do maior relevo, a de a classificação escrita passar a valer para a classificação final e, para mais, numa proporção de 50 por cento”, sublinha a directora do CEJ, que justifica a alteração salientando que “daqui resulta um maior equilíbrio na aplicação do sistema de selecção preconizado”.

No caso da via profissional de ingresso, a inovação mais saliente consiste na realização de “uma prova pública de discussão e de avaliação curricular”, que, como consta do documento, é “eliminatória e determinante” para a evolução do concurso nesta via. Neste sentido, o documento esclarece que “a experiência relevante será aferida mediante uma discussão oral (que pode ir até 90 minutos de duração) a realizar pelo candidato perante um júri a partir do currículo apresentado, através da qual o candidato demonstre possuir conhecimentos técnico-jurídicos relativos à prática profissional invocada, com potencialidades para corresponder ao núcleo essencial das funções de magistrado para que se habilita”.

Quanto à formação inicial para ingresso nas magistraturas, esta deve compreender um curso teórico-prático com dois ciclos e uma fase de estágio, com dois grandes objectivos: o desenvolvimento de qualidades pessoais e a aquisição e desenvolvimento de competências técnicas.

O curso teórico-prático deverá ter um primeiro ciclo, no CEJ, que “compreenda a formação comum dos futuros magistrados (juízes e do Ministério Público), devendo os planos curriculares de formação e os conteúdos dos programas reflectir a diferenciação das funções de cada magistratura (e, no caso dos TAF, a especialização das funções) e favorecer, designadamente através da realização de estágios de curta duração nos tribunais, uma opção consciente pela magistratura”. A clara distinção de funções e poderes mesmo durante o período de formação conjunta é sublinhado por Anabela Miranda Rodrigues, que afirma que a “diferenciação funcional das duas magistraturas deve reflectir-se com clareza no primeiro ciclo. A crescente especificidade e complexidade próprias do exercício da função de cada magistratura exige uma formação orientada para o exercício profissional diferenciado e a isto procuramos dar resposta, antecipando o momento da opção pela magistratura, que se fará mais cedo do que hoje, ou seja, no final do primeiro ciclo, antes de os auditores irem para os tribunais”.

Mas, continua, “a formação conjunta no primeiro ciclo é imprescindível, porque entendemos que é necessário um conhecimento técnico ligado ao exercício das duas magistraturas, para além de se exigir uma aculturação judiciária comum de independência e de isenção”. Como se destaca no documento orientador, trata-se de favorecer uma certa “cultura judiciária comum — cuja importância vai de par com a revalorização da decisão judiciária, para que o pensamento filosófico contemporâneo chama uma atenção muito especial —, que aponta decisivamente para um período temporalmente limitado, sem opção prévia, de formação comum. Entre uma formação totalmente conjunta até à fase de estágio de ingresso e uma formação totalmente fechada e virada sobre si mesma, de cada magistratura, a solução apontada é, para além disso, mais consentânea com a necessidade hoje amplamente reconhecida de abertura a diferentes realidades e ao conhecimento do exercício das outras profissões, que permitem experiências de alteridade, ganhos de inteligibilidade do sistema de Justiça e densificação e sofisticação na aplicação do Direito”.

Um segundo ciclo deverá ocorrer nos tribunais de comarca ou nos TAF, sendo os seus objectivos prosseguidos segundo as especificidades de cada magistratura, compreendendo estágios de curta duração em entidades e instituições não judiciárias cuja actividade seja mais relevante para cada uma das magistraturas. O documento prevê ainda um “maior peso atribuído à classificação final do segundo ciclo para efeitos de graduação dos auditores de Justiça”.

“A nossa preocupação é a inserção do futuro magistrado na realidade, quer seja a realidade dos tribunais, quer sejam outras realidades importantes para a tomada das suas decisões”, afirma, neste ponto, a directora do CEJ. Que acrescenta ainda que “o magistrado tem de ter as botas sujas de realidade. A decisão não se compreende descarnada da realidade nem se basta com o conhecimento de outras áreas do saber não jurídico! Isto é, sem dúvida, importante, e já levou esta direcção a abrir a formação a matérias não estritamente jurídicas. Mas o que deve estar em causa não é o «interface minimalista» mas uma interacção material efectiva entre o Direito e outras áreas, que só a imersão na realidade proporciona”.

Já a fase de estágio deve ter como grandes objectivos estratégicos a iniciação prática do exercício e o treino das funções inerentes à respectiva magistratura, durante uma fase de duração determinada que se estima em 18 meses e que, “em caso algum” deve ser encurtada. “A nossa ideia, ao propormos o aumento da duração do estágio, é a revalorização desta fase, que ainda é de formação, mas em que o estagiário já é responsável e despacha no processo. Pretende-se, por um lado, favorecer uma progressiva autonomia no exercício funcional, com a assistência de formadores e, por outro, dar aos Conselhos Superiores o tempo suficiente para apreciarem o desempenho dos estagiários”, refere Anabela Miranda Rodrigues.

Assim, o documento prevê um plano individual de estágio, elaborado pelo CEJ e homologado pelos Conselhos Superiores, cujo acompanhamento deve competir ao CEJ, ao qual caberá, neste quadro, através do director, prestar as consequentes informações aos Conselhos Superiores sobre a adequação do estagiário, nos momentos definidos no plano.

Formação contínua

Em relação à formação contínua, o documento orientador da reforma da Lei do CEJ propõe a abolição da distinção entre formação complementar e permanente, pressupondo que “a formação dos magistrados deve ser contínua, assumindo a natureza de formação ao longo de toda a carreira ou vida profissional”.

Esta formação contínua compreende a realização de acções conjuntas, relativas à magistratura Judicial, Administrativa e Fiscal, à magistratura do Ministério Público, à advocacia e outros profissionais que intervêm na administração da Justiça, quando tal se justifique à luz dos objectivos pretendidos com a realização das acções, e poderá ser, em certos casos, específica, em função das necessidades de cada uma destas magistraturas.
“O carácter obrigatório ou facultativo da formação contínua deve alcançar enquadramento e suporte nos estatutos de cada magistratura e poderá ser definido em função das fases da carreira dos magistrados, das necessidades que se suscitam a nível da afectação destes a jurisdições especializadas, nomeadamente na fase inicial e em matéria de actualização, bem como das necessidades de formação e aprofundamento normalmente ditadas por novidades e reformas legislativas de relevo”.

A formação contínua é uma “aposta de futuro” do CEJ. Quem o diz é Anabela Miranda Rodrigues, que justifica: “A importância desta dimensão da formação é hoje incontestável, quando é vertiginoso o ritmo das alterações legislativas, quando o mundo da vida é colonizado pelo Direito e este se expande a domínios completamente novos, e ainda quando se insiste, e bem, na necessidade de especialização”. Quanto a este último aspecto acrescenta que “a formação contínua assume um papel do maior relevo. Podendo a especialização vir a ser condição de acesso a tribunais especializados, ao magistrado caberia investir na especialização, com evidentes ganhos de produtividade para o sistema de justiça”. O relevo que assume a formação contínua tem, aliás, tradução na criação do Departamento de Formação Contínua – estrutura responsável pela planificação, organização, acompanhamento e avaliação das actividades neste domínio.

O documento defende que “as acções do âmbito da formação contínua devem ser concebidas e planificadas pelo CEJ, em articulação com os Conselhos Superiores da Magistratura ou dos TAF e do Ministério Público, e ser organizadas e realizadas pelo CEJ”, por si só ou conjuntamente com outras entidades. “Desde logo”, defende a directora do CEJ, “as universidades, mas não só. O CEJ tem larga experiência de colaboração com outras entidades, o que muito tem contribuído para a qualidade da formação, que deve obedecer a uma planificação por objectivos e deve atender a diferentes necessidades técnicas. Dou exemplos que vão desde a colaboração com a Ordem dos Advogados, o Centro de Direito do Consumo de Coimbra, ou a Academia de Direito Europeu de Trier, Alemanha, passando pela Autoridade da Concorrência ou a Direcção-Geral dos Impostos, até aos Departamentos de Investigação e Acção Penal, os Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, a Polícia Judiciária ou o Instituto de Medicina Legal e tantos outros”.

O documento termina com uma análise do que deverá ser a orgânica do CEJ, propondo uma nova composição dos órgãos, em que o Conselho Geral passa a integrar o presidente do Supremo Tribunal Administrativo e um magistrado designado pelo Conselho Superior dos TAF, o Conselho Pedagógico passa a integrar um magistrado designado pelo Conselho Superior dos TAF, uma personalidade designada pela Assembleia da República e dois docentes, e o Conselho de Disciplina passa a integrar um magistrado designado pelo Conselho Superior dos TAF. Para além do que já foi referido quanto a novas estruturas, salienta-se a criação do Gabinete de Estudos Judiciários, que deve ser o suporte da formação especializada que incumbe ao CEJ, privilegiando a investigação jurídica na vertente judiciária.

Por Paula Alexandra Almeida, in O PRIMEIRO DE JANEIRO

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