segunda-feira, janeiro 15, 2007

Crianças em risco: “Sistema não consegue proteger”


Os maus-tratos físicos e psicológicos contra crianças têm baixado apesar de hoje em dia serem mais frequentes as denúncias públicas. Juristas e psicólogos são unânimes ao defenderem que a lei tem de mudar, agilizando-se os procedimentos.

A linha SOS Criança registou em 2005 (últimos dados divulgados em Dezembro de 2006 no âmbito da rede Child Helpline International) 5.476 chamadas, entre denúncias de abuso e violência, de exploração, pedidos de apoio, de esclarecimento. As crianças dos zero aos 18 anos são os principais «utentes» do Instituto de Apoio à Criança (IAC). Criado em 1983 em Lisboa, o instituto tem lutado pela defesa e promoção do direito das crianças à saúde, educação, segurança social e tempos livres, conforme disse a «O Primeiro de Janeiro» o coordenador do projecto.

A lista dos maus-tratos físicos e psicológicos mais frequentes é longa, mas Manuel Coutinho afirma que “hoje pode-se dizer que o panorama é deveras positivo em relação ao passado”, devido a uma maior sensibilização da comunidade em geral acerca dos direitos da criança.

Ainda assim , o responsável do IAC certifica que “infelizmente situações de risco que fazem perigar as suas vidas, situações essas que nos deixam a todos muito tristes mas que não nos podem tirar a força para continuar o nosso percurso”.A defesa dos direitos das crianças é, contudo, um trabalho, alerta, “de todos nós, tanto colectivamente como individualmente. Ninguém pode delegar responsabilidades colectivas quando individualmente não contribui para que o superior interesse da criança seja garantido”.

Manuel Coutinho explica ainda que “o Instituto de Apoio à Criança através das suas diferentes actividades cobre diversas áreas que vão desde a criança de rua, à humanização dos serviços de atendimento à criança, passando pelo atendimento jurídico e pela actividade lúdica até às situações das crianças maltratadas, negligenciadas, abusadas sexualmente ou desaparecidas”.

No entanto, o mesmo assevera que “para todas estas situações o IAC tem estado atento ao pulsar da sociedade através de equipas dinâmicas e de um trabalho em parceria nacional e internacional tem respondido a uma multiplicidade de situações que muito têm contribuído para que as crianças, jovens e família tenham uma vida mais feliz”. A este apelo, refere o facto de este ser um serviço anónimo confidencial e de âmbito nacional.

Sendo o Instituto de Apoio à Criança(IAC) uma entidade cujo objectivo principal é a defesa e promoção dos direitos da criança, justificou-se a criação, em 1994, de um serviço jurídico, que nesta área pudesse prosseguir os mesmos objectivos, divulgando a legislação dos direitos da criança, assim como prestando esclarecimentos jurídicos e encaminhamento de situações que reclamem uma resposta a nível legal, atendendo ao caso concreto que diariamente surge, quer do continente e ilhas, quer do estrangeiro.Ana Perdigão e Ana Sotto-Mayor Pinto, do serviço jurídico do IAC dizem que no âmbito da mais recente reforma do Direito de menores, a Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, (Lei de protecção de crianças e jovens em perigo), foi o IAC enquadrado como entidade com competência na área da infância e juventude.

Em articulação

Como tal, têm estas entidades de primeiro nível (de intervenção) a prioridade na intervenção junto da criança e jovem em perigo, sendo que a situação em concreto apenas deverá ser sinalizada à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) competente, quando tal não for possível e uma vez esgotados todos os meios que estas entidades dispõem para remover o perigo em que a criança ou jovem se encontram, explicam.

“Quase sempre a intervenção deste serviço jurídico se esgota na prestação de informação e encaminhamento”, afirmam.

Presente num segundo nível de intervenção, o IAC, representado nas quatro Comissões de Protecção de Crianças e Jovens existentes na cidade de Lisboa, ao lado de outros parceiros, “encontra legitimidade para aplicação de medidas de promoção e protecção que as várias situações de perigo aí sinalizadas requerem”, rematem as especialistas.

Já o Juiz Eurico Reis começa por salientar questões sociais relacionadas com uma situação de maus-tratos contra criança: “O problema inicia com a questão desses filhos serem normalmente crianças não desejadas em que os pais na sua maioria sofreram também na sua infância situações de maus-tratos”.
Para o magistrado, "esta problemática não irá, no entanto, ser tratada enquanto a sociedade não olhar com olhos de ver e sem demagogias”.

Justiça mais ágil

No que confere à legislação, e depois de traçar uma evolução da justiça de menores que tratavam situações relativas a crianças nos tribunais tutelares de menores e nos tribunais de família, que apenas decidiam o poder paternal.

“Os primeiros acabaram por desaparecer porque dizia-se que estigmatizavam-se as crianças e estas consideravam a figura do juiz intimidante”, conta.

“Mais recentemente importamos a ideia de mediação que se traduziu no surgimento das comissões de protecção de crianças em risco”, acrescenta.

Segundo Eurico Reis, a mediação penal pressupõe que a pessoa aceite o crime que lhe foi imputado, o que raramente acontece transitando o processo para o tribunal.

Nesse contexto, o magistrado que aponta a “morosidade” como um problema que é transversal à justiça em Portugal diz ainda que a “falta de especialização e de experiência de vida nessas instâncias resultam muitas vezes, infelizmente, na morte de muitas crianças”.

Eurico Reis compara mesmo os tribunais de instrução criminal aos de família e menores, defendendo que esses juízos “deveriam ter na sua composição juízes desembargadores e os processos deveriam ser também muito mais agilizados”.

Sinais de risco

Paula Maia, psicóloga e educadora responsabiliza também a legislação portuguesa pelas “trágicas mortes a que temos assistido”.

A especialista que também evidencia que as crianças a quem são infligidos quaisquer tipo de agressões físicas ou psicológicas são filhos de pais que foram também vítimas.De acordo com a psicóloga é igualmente à sociedade que cabe proteger essas vítimas, tendo de estar atenta aos sinais.

“A criança reage de duas formas ou apresenta sinais externos, como maus comportamentos, excessiva irritabilidade, para muitas vezes chamar a atenção, ou internos, como a depressão e o isolamento”, especifica.

Mas, Paula Maia considera acima de tudo que reside na lei a culpa de muitos dos casos de maus-tratos agravados chegarem a consequências trágicas. “É incompreensível que no século XXI a legislação continue a presumir que os filhos são propriedade dos pais”.

Nesse sentido, critica duramente que os tribunais ignorem muitas vezes mais de que um parecer psicológico. “Continua-se a desacreditar muito no papel dos psicólogos sublinha, complementando depois que seriam de extrema importância existir maior “celeridade dos processos”.

Paralelamente, e à semelhança do Juiz Eurico Reis acredita que a falta de especialização e experiência de vida de muitos dos decisores nesses tribunais continuem a proteger os pais.

“A lei acaba por não funcionar como um mecanismo de protecção da criança. Esses responsáveis podem entender muito de leis mas não percebem nada de psicologia, penalizando crianças que ficam com danos irremediáveis até ao fim da vida e outras que não conseguem sequer sobreviver”.

E reforça: “O sistema não consegue proteger as crianças”. Em suma, a psicóloga aconselha a que o Estado, pais, educadores e legisladores, em articulação, “devem legislar, vendo como se pode por a lei em prática, no sentido de melhor proteger as crianças”.

(...)

in O Primeiro de Janeiro.

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