sexta-feira, junho 22, 2007

TESTEMUNHO DE UMAS BOAS (MÁS)HORAS NA BOA HORA

Por Fernanda Câncio
Jornalista
(in
DN Online)

"Tribunal da Boa Hora, esta semana. Convocada como testemunha para as 14 horas, apresento-me, pontualmente (que é como quem diz, muito a tempo para quem conhece o funcionamento dos tribunais portugueses) às 14.07. No foyer do tribunal, uma fila de vinte pessoas, ostentando o BI, espera a vez para receber um cartão de visitante das mãos de uma funcionária estonteantemente lenta. Ainda avento existir uma entrada para público e outra para testemunhas, mas não. Só "advogados, funcionários e magistrados" têm acesso livre, sem necessidade de identificação, revista policial ou sequer um olhar. É levar uma pastinha e entrar em passo assertivo e estugado, e poupa-se um quarto de hora (pelo menos) em pé, mais a necessidade de mostrar o conteúdo do saco, dos bolsos e quaisquer "limas ou corta-unhas" que transporte, assim como da entrega da tampa da garrafa de água que porventura (avisadamente) traga consigo e da submissão ao detector de metais. Qualquer energúmeno que queira entrar de Uzi, bomba ou faca de cozinha se fará passar por advogado, relegando a revista do "povo" para a função de cumprir o regulamento (para além, naturalmente, de pôr o povinho no lugar).

E as regras são sagradas. Quando o casal à minha frente na fila, acompanhado da filha de seis anos, alcança a vez, a funcionária é peremptória: "A criança não pode entrar." Os pais explicam que não tinham onde a deixar e prometem que ela não entrará na sala de audiências. Sem sucesso. Quando o pai diz à filha para se sentar na entrada do tribunal "à espera", a funcionária nem pestaneja.

No país em que toda a gente vibra com a sorte da inglesinha Maddie, há um tribunal que, sem fazer nas convocatórias qualquer referência ao facto, barra a entrada a crianças e se borrifa na sua sorte - até que sejam objecto de um crime, altura em que promete dedicar-lhes horas de reflexão, pesar e rigoroso apuramento de responsabilidades. Há mais perfeita caricatura da relação imperial e mecânica da justiça portuguesa com os cidadãos? Depois disto, talvez nem valha a pena lembrar o desprezo que demonstra pelas testemunhas, ao fazê-las esperar horas perdidas e às vezes dias a fio pelo momento de serem ouvidas, num edifício em que não existe um local para beber água (descontando os lavatórios das casas de banho) nem para comprar alimentos, e onde os lugares sentados são exíguos. E é a justiça, diz a Constituição, administrada em nome do povo, e é este um dos tribunais da capital. O tal que foi há dias notícia por causa de um rato. Num navio tão naufragado, é caso para perguntar se não seria o último."

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