segunda-feira, junho 11, 2007

Política criminal contestada

A aprovação da proposta de lei de política criminal na Assembleia da República, só com os votos favoráveis do PS, não colheu o entusiasmo dos magistrados, que não poupam críticas ao diploma. António Cluny, presidente do sindicato, crê na abertura da tutela à negociação...

A maioria socialista na Assembleia da República aprovou na generalidade a nova Lei-Quadro de Política Criminal, que deverá entrar em vigor no dia um de Setembro, mas os partidos da oposição dividiram-se entre a nota negativa ao diploma (PCP, PEV e BE) e a abstenção (PSD e CDS). No sector judiciário, o primeiro texto legal do género em Portugal preconiza o tratamento prioritário, em termos de prevenção e investigação, dos crimes violentos contra pessoas e contra o património, mas tem suscitado muitas vozes críticas, havendo mesmo magistrados que recusam a nova Lei 17/2006, asseverando que aquela norma entra em conflito com a Constituição da República em diversos pontos.

O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é uma das vozes dissonantes. Em declarações a O PRIMEIRO DE JANEIRO, António Cluny lembrou que “a lei apenas foi votada na generalidade”, fazendo votos de “que na votação na especialidade possa receber muitas alterações”, tendo em conta “alguns aspectos que contendem com a Constituição da República”, e outros que “remetem para um Código Penal que não existe”. António Cluny recordou que, apesar de a revisão do diploma estar a ser estudada, “o novo Código Penal ainda não foi aprovado, e há mesmo fortes dúvidas de que venha a sê-lo”, tornando-se nessa medida ainda mais necessária a adequação da Lei 17/2006 à Lei Fundamental.

Sem querer adiantar muito mais pormenores sobre a medida, visto que ainda não é chegado o momento de ela ser posta em prática, e a votação na especialidade terá forçosamente que produzir algumas mudanças no teor da norma, o líder do SMMP remete para um parecer publicado em Maio por aquela instância, em que fica bem patente as reticências que o diploma agora aprovado no Parlamento provoca aos magistrados. Naquele parecer lê-se que “o modelo de lei que o Governo colocou à discussão pública (...), configurou-se como um regulamento burocrático, abstracto e condicionador da acção autónoma, objectiva e imparcial do Ministério Público na apreciação dos casos concretos”.

As críticas continuam quando o documento refere que o modelo preconizado pela tutela, “mais do que procurar responder às dificuldades da investigação – a única área da política criminal a que, na realidade, dá relevo –, revela, antes e sobretudo, preocupações com valores de economicidade do sistema prisional e do aparelho judiciário e policial, não tendo em conta a realidade sociológica que resulta dos recentes relatórios das forças de segurança”, que dão conta de um aumento e de uma crescente gravidade da criminalidade em áreas específicas.

Subindo de tom, o SMMP acrescenta que o Ministério Público é “verdadeiramente a única entidade a quem a lei parece querer dirigir-se, mas não a única que pretende condicionar”, constituindo-se, desse modo, como “uma interpretação política rígida, abstracta e dirigista do Código de Processo Penal”, que “não tem nem pode ter em conta a realidade e a singularidade dos casos concretos”, nem a obrigação, a nível constitucional e estatutário, de a Magistratura e cada magistrado se regerem pelos princípios da objectividade e da imparcialidade, tendo em vista a concretização de uma Justiça independente e igual para todos.

Cabe mais um...

Reiterando as palavras de António Cluny ao JANEIRO, o parecer do SMMP refere que “esta proposta de lei tem por base um texto de uma outra proposta de reforma do Código Penal e do Código do Processo Penal, que ainda não foi discutida e aprovada na Assembleia da República, e que não se sabe se e quando será alterada”, pelo que, “além de tanger, como muitos especialistas referem, os princípios constitucionais da autonomia do Ministério Público e da independência do poder judicial, faz recair sobre o MP ónus, encargos e responsabilidades cujo efectivo cumprimento não está exclusivamente na sua esfera”, e “constituir-se-á, sempre que não for interpretado como visando pôr em perigo aqueles princípios constitucionais, como um Código do Processo Penal próprio do Ministério Público e, assim, como um instrumento burocrático e inútil, que apenas conduzirá à paralisia do sistema e ao aumento do seu bloqueamento”.

Questionado sobre o facto de o Governo, por assentar numa maioria parlamentar, poder fechar os olhos às reivindicações do sector judicial e fazer aprovar a lei na especialidade sem proceder às alterações que os juízes e magistrados apontam como essenciais, António Cluny deu conta ao JANEIRO de que está convicto da abertura dos deputados, salientando que os aspectos que a classe quer alterar dizem fundamentalmente respeito a “questões de carácter técnico, a que a maioria estará aberta a negociar”, porque são problemas que dizem respeito à sociedade e a que devem estar atentos e disponíveis todos os deputados, independentemente da sua cor política.

Igualmente crítico da nova lei de política criminal é Artur Costa, juiz do Supremo Tribunal de Justiça, que recorre à alegoria do transporte público para expressar o seu entendimento face ao diploma. Refere aquele responsável que “a lei de política criminal faz lembrar um daqueles transportes públicos em que cabe sempre mais um que apareça pelo caminho: mete-se lá uns quantos crimes de investigação prioritária, mas, dando-se o caso de um crime não previsto aparecer badalado na Comunicação Social e adquirir o estatuto social de crime grave, também passa a ter a dignidade suficiente para entrar na carruagem”.

Prosseguindo em terreno metafórico, o juiz constata que então “os responsáveis batem com a mão na testa e reconsideram ponderosamente: ora cá está mais este! Como é que não nos lembrámos deste? Grita-se alarmadamente para o motorista que pare e deixe entrar mais este passageiro. É um caso de urgência. E assim entra o professor agredido pelo aluno, mais adiante a criança raptada, e a seguir logo se verá. É só uma questão de dar um empurrãozinho nos que já estão dentro, abrir um espaçozinho e deixar entrar todos os prioritários que forem aparecendo. Uma questão de boa vontade e de solidariedade passageira”, resume Artur Costa.

Falsa priorização

António Martins, juiz auxiliar no Tribunal da Relação de Coimbra e actual presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, é outra das vozes críticas da norma agora aprovada na generalidade. Assumindo-se “pessimista” diante da proposta de lei que define como “inútil e potencialmente perigosa”, o magistrado identifica como “um mau sinal” o facto de estar “a criar-se a ideia de que há necessidade de definir prioridades apenas porque não há capacidade de resposta efectiva no sistema a todo o volume processual gerado pela criminalidade”, e refere ter “duas razões para entender que este projecto de lei é mais uma das várias leis inúteis com que o sistema político-legislativo português nos tem brindado”. E são elas o facto de “não se estabelecer efectivas prioridades, quer em termos de prevenção, quer no que diz respeito à investigação, e também não se concretiza meios para lograr realizar tais prioridades”.

O líder da ASJP acredita que “o leque de crimes definidos como de prevenção e de investigação prioritárias é de tal maneira vasto que dificilmente, de modo sério, pode ver-se estabelecida aí uma priorização”. António Martins afirma ser claro que, “com tão extensa lista de crimes – que abrangerá 50 por cento dos inquéritos que estão pendentes nas comarcas, segundo já se disse –, não se prioriza nada”. Para o juiz parece óbvio que quando, como prevê a Lei 17/2006, forem apresentados os relatórios do Governo e da Procuradoria-Geral da República sobre a execução da lei, “não será possível perceber se alguma coisa falhou, nem o que terá sido”. No fundo, acrescentou, “continuaremos na típica atitude, que nos é tão cara, de não criar mecanismos de efectivo controle e melhoramento, nem de permitir apurar as responsabilidades” no processo.

Outra questão levantada pela nova norma é, de acordo com António Martins, a sua “perigosidade”, pelo facto de “o legislador considerar necessário, para alcançar o desiderato daquelas prioridades, atingir a autonomia do Ministério Público”. Para o magistrado que preside à associação sindical “é um erro pensar que é necessário atingir a autonomia do MP para dar cumprimento a uma política criminal que seja congruente com os valores da Constituição e da lei sobre os bens jurídicos a prevenir e tutelar prioritariamente”. Defendendo mesmo a ideia contrária, assevera que “é á máxima autonomia que deve corresponder a máxima responsabilização, tendo necessariamente presente a forma como o Ministério Público se encontra hierarquizado”.

Tiro aos pratos

A interpretação da nova lei de política criminal suscitou também um comentário de grande mordacidade da parte de Guilherme da Fonseca, juiz conselheiro jubilado do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, para quem a leitura da proposta “faz lembrar um torneio de tiro aos pratos, em que os concorrentes se dispõem a acertar no maior número possível de alvos”. Na opinião do magistrado é também assim que se comporta o legislador nesta matéria, “apostado em acertar nos crimes de prevenção prioritária e de investigação prioritária identificados nos artigos 3º e 4º, com o objectivo de acertar em algum ou alguns deles, no quadro de uma repressão a levar a cabo, de modo reforçado, nos termos definidos no artigo 5º” da norma.

Independentemente do que define como o “critério científico” que terá presidido à selecção dos crimes elencados como prioritários, Guilherme da Fonseca atesta que “nenhuma vantagem prática se alcança com tal opção”, pois no prazo de dois anos, o prazo da lei a aprovar na especialidade pela Assembleia da República, tudo irá depender do momento e local da ocorrência dos possíveis e presumíveis delitos. O juiz recorda que pode sempre haver um elemento que resgate para o elenco dos crimes prioritários um crime que à partida não o seria, apontando como exemplo dessa perversão da lista o sequestro da menina inglesa ocorrido há pouco mais de um mês no Algarve, em que foram o momento e o local da ocorrência a ditar a sua importância, fazendo esquecer qualquer outra prioridade.

António Pires de Lima, bastonário da Ordem dos Advogados no triénio 1999/2001, recordou que “há quem tenha visto no anúncio da lei de política criminal o esperado reconhecimento – a sua culpa – pelas carências de meios humanos e materiais na investigação e o estabelecimento de medidas de eliminação dessas carências, mas aquilo que ela traduz é algo muito diferente: expressa o desejo de o poder político chamar a si, em cada dois anos, e por um período igual, a definição do que é para cumprir da lei, e do que é para esquecer; assegura que o poder político, impondo-se ao PGR, há-de dominar um Ministério Público instrumentalizado, ao serviço do Parlamento e dos que têm o poder de governar; e anuncia que os juízes serão as marionetas da orientação parlamentar”.

A proposta de lei assume como objectivos primaciais “prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade, promovendo a defesa dos bens jurídicos, a protecção da vítima e a reintegração do agente do crime na sociedade”. A lei-quadro vem estabelecer que a política criminal é definida através de leis temporárias, com vigência de dois anos. De acordo com o Governo, pretende-se que os órgãos de soberania assumam as responsabilidades que a Constituição da República Portuguesa lhes atribui na área da segurança e da prevenção da criminalidade, enquanto “os cidadãos passam a saber que é dada prioridade na prevenção, na investigação e no exercício da acção penal, ao homicídio, ao tráfico de drogas, ao terrorismo, à corrupção e ao fogo posto, obviamente sem prejuízo de todos os restantes crimes serem perseguidos no âmbito da actividade e das competências das forças da segurança e da rede de tribunais nacionais.
(...)

Teor integral da notícia in O PRIMEIRO DE JANEIRO.

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