domingo, junho 03, 2007

"Os juízes têm de aprender a comunicar, explicar-se ao povo"

Entrevista ao Bastonário Rogério Alves pela jornalista Fernanda Câncio

Rogério Alves

Nasceu em 1961

Licenciado em Direito, em 1984, pela Universidade Católica, onde rege o Seminário de Retórica Forense do 5.º ano de Direito

Advogado desde 1987

Comentador habitual de temas jurídicos em diversos órgãos de comunicação social

Mais novo que os antecessores mas menos truculento, o actual bastonário dos advogados comunga com eles do tom de quem se deslumbra com a própria oratória e do gosto pela política. Junta- -lhe o futebol: dirigente do Sporting, festeja o "bom ano". Da venda de Nani diz que foi um bom negócio. E que o clube é "o maior exportador de talento da Europa - do mundo, talvez". Exageros que se perdoam

Tem estado a ser muito discutido um acórdão do Supremo que diminui a pena a um abusador de um jovem de 13 anos. Parece-lhe que o escândalo que se criou se justifica?

Creio que é muito útil que se discutam as decisões dos tribunais. As pessoas aceitam-nas tanto mais quanto as compreendam. Durante muitos anos, a discussão dessas decisões estava muito reservada aos juristas e às revistas técnicas da especialidade. A mediatização da justiça transportou para o público a discussão. É natural que uma frase ou outra possam causar mais comoção. Mas é fundamental dizer que só devíamos discutir os acórdãos dos tribunais depois de os lermos... E é muito costume discutir-se acórdãos por dois ou três extractos. Além disso, acho que se podem discutir acórdãos sem se entrar numa espécie de histeria, que foi um pouco o que sucedeu neste caso. O crime de abuso sexual de menores é sempre um crime gravíssimo e repugnante. E o tribunal, apesar de ter diminuído a pena, não disse em momento algum que tinha de se contemporizar com o crime, que é o que por vezes parecia resultar da discussão.

O caso teve a particularidade muito incomum de se ter visto um juiz do Supremo a justificar um acórdão que assinou. O que, aliás, pode vir a ser considerado uma quebra do dever de reserva pelo Conselho Superior de Magistratura. Como vê esta atitude do juiz?

Parece-me bem, saudável. Muitas regras da justiça portuguesa estão fora do tempo e do mundo. Se toda a gente está a discutir uma coisa, não pode ser o gerador da coisa que fica fora da discussão. Claro que podemos questionar se deve ser o próprio magistrado a fazê-lo ou deve haver outra fórmula. É preciso encontrar formas de pôr a justiça a comunicar. Os juízes não estavam habituados a comunicar, nem bem nem mal. Proferiam decisões. Mas hoje abre-se a TV e o A e o B estão a comentar decisões judiciais. E isso impeliu um pouco os tribunais a virem explicar-se. Isso parece-me positivo. O problema é que as formas como isso é feito têm geometria variável.

Muito variável... O Conselho Superior de Magistratura (CSM) não tem gabinete de imprensa, os tribunais também não... A comunicação faz-se por várias vias e muitas vezes ínvias.

O CSM deveria claramente ter um gabinete de imprensa a funcionar eficazmente, que pudesse esclarecer qualquer dúvida em casos de debate público. Porque é impressionante a quantidade de imprecisões que se dizem sobre os casos judiciais. É fundamental que se possa esclarecer antes de se instalar a confusão. E se talvez não se justifique um gabinete de Imprensa em cada tribunal, com certeza que o Supremo e as Relações deveriam tê-los. Para que o debate, o questionamento das decisões, seja esclarecido e permita fazer avançar a jurisprudência.

Acha que é isso que se tem passado?

Acho que uma maior abertura e permeabilidade entre o mundo judiciário e outros mundos... Tem de ouvir as opiniões exteriores.

E as interiores. Tem havido juízes a criticar sentenças que levam processos disciplinares por esse facto. O que parece dar a ideia de que existe um acantonamento corporativo das instituições que representam os juízes...

Pode acontecer, e tem acontecido haver esse tipo de processos... Mas creio que se tem evoluído nessa matéria. Agora o que é preciso também é adaptar o sistema para acabar com este divórcio entre os cidadãos e a justiça. Os juízes achavam que estavam numa torre de marfim, e agora já não há torre de marfim. Mas creio que os magistrados são, em regra, julgados com enorme injustiça. Os juízes julgam muito melhor do que são julgados.

Ainda a propósito da geometria variável da forma como a Justiça comunica, no caso Madeleine assistimos a conferências de Imprensa quase diárias da Polícia Judiciária, divulgação do retrato robô de um suspeito... Como vê esta forma de as instituições se moldarem às exigências mediáticas?

Em primeiro lugar, revela uma coisa: a força absolutamente arrasadora, abrasiva e imparável da comunicação social. É uma força brutal, de ciclone. E ninguém consegue ser-lhe indiferente. O que é que se criticava à PJ? Não dizer nada das investigações. E então a polícia alterou um pouco a sua conduta, e passou a ter um porta-voz.

Bom, não é verdade que a PJ não costume dizer nada sobre as investigações. O que se passa é que a informação passa por certos canais, sem transparência, e muitas vezes sem garantias de rigor.

Sim, as coisas chegam por fugas cirúrgicas. Claro que prefiro a fórmula oficial, em que a polícia, se é do interesse público, deve pronunciar-se, respeitando obviamente o que não deve ser divulgado. Sou aliás um crítico acérrimo do segredo de justiça, que, tal como está formatado, é uma coisa absolutamente imprópria, que caiu no ridículo nacional e é um símbolo do achincalhamento das instituições, porque parece que só existe para ser violado. Claro que há casos em que se justifica. O problema é que se aplica nesses e nos outros todos. O segredo de justiça só serve para duas coisas: proteger a qualidade da investigação e a identidade das pessoas. Mais nada.

Precisamente, no caso Madeleine a identidade dos suspeitos não só não foi protegida como foi exposta de forma que o representante da secção de Direitos Humanos da OA, Carlos Pinto de Abreu, considerou inaceitável.

Compreendo a posição de Carlos Pinto de Abreu.
Mas não sei se, malgrado os custos incríveis para o visado, era evitável a divulgação da imagem do suspeito. Isso não deve servir para desculpabilizar ninguém, mas há situações em que a viabilidade prática dessa protecção é nenhuma.

A comunicação mais frontal por parte da PJ aconteceu desta vez mas nada garante que seja a regra daqui por diante.

Esperemos que o precedente não seja fechado. A nossa justiça não tem mostrado jeito para as relações públicas. Espero que os casos recentes a façam perceber que deve comunicar oficialmente, de rosto descoberto, com a população. O que evitaria muitas confusões e muitas calúnias.

A OA lançou o debate sobre as incompatibilidades. Começou pelos presidentes de Câmara, passou para os vereadores... Há quem tema que falte a coragem para falar dos deputados.

Falta coragem?! Ora essa. Então já se causou um alvoroço tão grande em relação ao simples anúncio do debate... Vamos convocar a advocacia portuguesa a debater a sua Ordem, e vamos reabrir esse debate. Não há falta de coragem, temos é alergia a situações panfletárias.

Qual pode ser a incompatibilidade entre ser advogado e deputado?

Por um lado, a igualdade entre advogados, porque um deputado pode ter uma posição mais preponderante pela proximidade com o poder legislativo. E de alguma forma também a fronteira da independência.

Acha que os deputados-advogados devem votar num assunto que 'os corta ao meio'?

Calma! Lançámos agora o debate, estamos muito longe de votações no Parlamento. Mas acho que devem votar.

Fala há muito em fixar um salário para o bastonário. Qual seria o salário justo?

Vários congressos aprovaram a existência desse salário, mas nunca foi fixado. Há vários critérios na Europa. Desde o que se ganhou no ano anterior, até um salário fixo, que não deve ir para além do Procurador da República ou do Presidente do Supremo. Também há o debate sobre tal implicaria dedicação exclusiva...

Não se ganhando nada, pelo contrário, outras coisas tornam o lugar apetecível...

A honra de ser eleito pelos colegas. E a preocupação com a advocacia, a coisa pública.

E um palco mediático e notoriedade.

Claro que sim. Mas, repare, eu enquanto presidente do conselho distrital de Lisboa já era muito conhecido. Porque o sortilégio da mediatização da justiça fez com que tivesse uma presença pública muito assídua na TV.

Põe-se a hipótese de lhe interessar a política. É assim?

Vou responder sem sofisma. A política interessa-me. O governo da coisa pública interessa-me, o estado do País interessa-me. Mas no meu horizonte está o regresso à advocacia a tempo inteiro, que é uma coisa que a vida pessoal me impõe.

in
DN Online.

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