sábado, maio 19, 2007

O lugar da ética na valsa dos lugares

Na passada manhã de quinta-feira, Sua Excelência o Presidente da República deu posse ao novo ministro da Administração Interna: o Mestre Rui Carlos Pereira. Com este acto, dá-se (por agora...) terminada uma densa novela em que uma intensa valsa de lugares parece ter desejado desafiar a ideia da impossibilidade de o eleito possuir o dom da ubiquidade.

Assomando-nos às particularidades do caso, e sabendo que as motivações para tal, porventura, se reconduzem sempre à mesma circunstância, uma pergunta se impõe fazer: qual o lugar da ética nesta valsa de lugares?

É notável como o exemplo de Rui Pereira consegue, em tempo recorde, tornar real aquilo que a ambição de muitos não chegaria, sequer, a admitir, mesmo politicamente, como possível. Na verdade, depois de presidir à unidade de missão de reforma penal, Rui Pereira conseguia ainda há poucas semanas ser empossado do cargo de juiz conselheiro do Tribunal Constitucional, tendo para tal renunciado a um outro lugar: o que ocupava enquanto membro do Conselho Superior do Ministério Público (para o qual havia sido designado por maioria qualificada da Assembleia da República, nos termos da alínea g) do artigo 163º da Constituição e da alínea f) do n.º 2 do artigo 15º da Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto).

Agora, menos de dois meses decorridos o Primeiro-Ministro chama-o para o Governo, para dirigir a pasta da administração interna. E ele, empurrado pela voz do que diz ser o dever público (que segundo o próprio terá falado mais alto...), aceitou.

Mas que arrazoador dever público é este?

Será a concretização funcional e rigorosa da obediência ao interesse de todos os cidadãos administrados? Se for, mais não nos resta do que estar gratos à incansável prestabilidade do Mestre Rui Carlos Pereira. A este título, descansem-se as consciências porque a sua solicitude para os cargos irá, certamente, e a seu devido tempo, merecer uma reconhecida condecoração presidencial.

Porém, e salvaguardado o devido respeito (que nestas coisas fica sempre bem salvaguardar...), não nos parece ser de dever público do que se trata. Mas o mais normal é estarmos equivocados.

Agora, se é, então não nos parece que possa, ainda assim, postergar o valor da ética para o mais recôndito dos lugares. Não, certamente, os das notas desta singular valsa, mas os da obscuridade a que uma conveniência política cúmplice do mais primário autoritarismo almeja alcançar.

Por isso que, o presente caso é paradigmático daquilo a que muitos vêm fazendo alusão:

a crise da ética na pós-modernidade.

É comummente sabido que vivemos tempos de clara dissociação entre a esfera individual e a universal, com ocorrência de uma crise simultânea da moral e da democracia.

Mas, para mal dos nossos pecados (e dos outros), cabe à ética debruçar-se sobre o que é considerado adequado e moralmente correcto num concreto tempo e espaço. Ela consubstancia-se redimensionadamente num estudo de juízos de apreciação referentes à conduta humana.

Uma solicitude exagerada aos lugares disponibilizados pelo reconhecimento interesseiro do poder político, consubstanciando uma perversão particularmente gravosa da ética, alcança um perturbador desprezo pelas instituições democráticas.

As instituições públicas, em especial os órgãos de soberania, não merecem nem devem ser instrumentalizados por um maestro investido de um poder que se legitima dia após dia na realidade que ele próprio constrói, e que a permissibilidade dos cidadãos concede.

Diz hoje o jornal Sol que "o novo ministro da Administração Interna é maçon há vários anos, do Grande Oriente Lusitano (GOL), tendo recentemente fundado a Loja Nunes de Almeida – assim baptizada em homenagem ao ex-presidente do Tribunal Constitucional".

De onde e por quem a orquestra que dá fundo à valsa dos lugares é dirigida não sabemos, o que sabemos é que o atentado à ética parece a todos os níveis atroz.

Talvez tenha razão o José da GLQL quando escreve: "perante a saída, agora conhecida, do novel juiz do Constitucional, Rui Pereira, para o Governo, há quem diga que tal facto significa a admissão mais chã e evidente de que o Tribunal Constitucional perdeu de vez a máscara de uma honra que embora aparente, se afixava nos seus estatutos.A independência e a honra profissional, sendo apanágio de qualquer juiz, é algo que deve existir e parecer que existe.No caso do Tribunal Constitucional, os recentes acontecimentos, indicam que já não existe.
Alguma vez existiu, ou temos apenas mais uma réplica do que se passa noutras insituições?
A democracia pode conviver muito tempo com este estado a que chegamos?"

Ora parece-nos, efectivamente, que não!

Mesmo ancorados no pensamento de Ricoeur, segundo o qual, a democracia é o regime para o qual o processo da sua própria legitimação está sempre em curso e em crise, não nos parece que, no nosso tempo, não possa haver lugar para a ética.

Porventura, há até quem deseje que ela sequer exista, ou seja pervertida ao ponto do seu irreconhecimento.

Para nós, porém, a vida pública, em especial, reclama de uma ética que não se basta com o vazio de toda a dimensão interior e universal do político. Tal ética não pode consistir em uma estratégia de sobrevivência, do qual o presente caso é paradigma acabado.

Quem sabe a pergunta seja outra: dar-nos-á a democracia ainda tempo para a recompôr das afrontas mais desonestas?

VEXATA QUAESTIO

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