segunda-feira, abril 16, 2007

Lei permite destruição de provas com processos a decorrer

A lei que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses diz que as provas biológicas podem ser destruídas dois anos após o exame pericial, ou seja, num momento em que o processo pode ainda estar a decorrer.


A Lei 45/2004, de 19 de Agosto, aprovada no Parlamento durante o Governo de Santana Lopes e que teve o aval de todas as bancadas com excepção da do Bloco de Esquerda, estipula - no ponto 2 do artigo 25º - que as provas podem ser eliminadas dois anos depois da perícia, excepto "se o tribunal tiver comunicado determinação em contrário".

"Já era pouco se os dois anos contassem a partir do trânsito da decisão em julgado, pois pode ser necessário rever a sentença e esses procedimentos são demorados, mas a contar da realização da perícia ainda é pior", disse à agência Lusa o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, Carlos Pinto de Abreu.

Para o advogado, "dois anos é manifestamente pouco se tivermos em conta a duração média de alguns inquéritos" em Portugal, pelo que o ponto 2 do artigo 25º da Lei 45/2004 "pode afectar muito gravemente os direitos dos arguidos e das próprias vítimas".

Embora acredite que a lei "visa tornar mais eficazes os processos e a protecção dos envolvidos, pois existe sempre, mesmo que teoricamente, o risco de o material vir a ser usado indevidamente", Carlos Pinto de Abreu julga que "cinco anos seria um período mais razoável, mesmo não sendo fácil determinar um prazo fixo".

O estabelecimento de um prazo limite para a conservação dos vestígios biológicos também foi sublinhado por João Carrola, juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa, para quem "é sempre difícil estipular um prazo, por muito que generoso que ele fosse".

Apesar disso, os dois anos podem, na sua opinião, ser efectivamente escassos.

O risco de os processos onde exista necessidade de exames periciais não estarem findos, ou seja, com trânsito da decisão em julgado, dentro dos dois anos que a lei aponta como período de conservação dos vestígios biológicos é, segundo o juiz, "bem grande".

Como exemplo, João Carrola apontou à Lusa o processo "Sá Carneiro", que acompanhou de perto.

"Neste caso, depois de realizadas as autópsias iniciais aos corpos das vítimas, que terão tido lugar em Dezembro de 1980, houve necessidade - para confirmação dos resíduos que teriam ficado nos ossos dos pés das vítimas - de proceder a novos exames", recordou.

Assim, "foram feitas exumações de cadáveres mais ou menos em Agosto de 1995, ou seja, 15 anos após o acidente", indicou o juiz.

De acordo com João Carrola, "o que se verificou com a exumação de cadáveres poderia suceder com a necessidade de reanálise de amostras de tecidos e órgãos a nível de química orgânica", tornando-se o procedimento inviável se as amostras já tiverem sido destruídas.

Antes de entrar em vigor a actual lei, "não estava definido qualquer limite para a conservação dos vestígios biológicos, que ficavam guardados até o tribunal ordenar a sua destruição", recordou Francisco Côrte-Real, vice-director do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), onde as amostras ficam depositadas.

De certo modo, aquilo que era então regra tornou-se agora excepção: a intervenção do juiz no destino das amostras.

Todavia, Francisco Côrte-Real assegurou à Lusa que "o Instituto de Medicina Legal não vai destruir a amostra logo aos dois anos e um dia".

"Na verdade, como só em Agosto de 2006, há cerca de oito meses, se cumpriram dois anos sobre a publicação da Lei [em Diário da República], o problema ainda não se tornou evidente", reconheceu o vice-director do INML, segundo quem a lei veio dar resposta à falta de espaço e às dificuldades de conservação das amostras de toxicologia forense, onde se incluem "os órgãos ou partes de órgãos".

"Se estivermos a falar de um pêlo, um cabelo, uma amostra de sangue ou de sémen, as condições de conservação podem ser asseguradas durante bastante tempo, o que não acontece com os órgãos ou partes destes, que tendem a degradar-se mesmo congelados", esclareceu.

"Além disso, os órgãos ou amostras de órgãos ocupam muito espaço, o que se torna problemático", acrescentou.

Presentemente, "o que o Instituto faz quando tem falta de espaço é destruir as amostras mais antigas que - como ainda estão ao abrigo da lei anterior - exigem uma autorização do tribunal", revelou.

E quando chegar a altura de destruir as amostras posteriores a Agosto de 2004? "O Instituto é muito cauteloso e trabalha em articulação com os tribunais, pelo que, apesar da permissão da lei, não procederá nunca de ânimo leve" - assegurou.

Garantias que não convencem Maria da Saudade Nunes, directora do Laboratório de Polícia Científica, que afirmou à Lusa discordar "da possibilidade de destruição das amostras sem que tenha havido uma indicação nesse sentido por parte do tribunal".

Maria da Saudade Nunes continua a defender que "cabe aos magistrados dar indicação sobre o destino das amostras".

Porém, "e apesar de se tratar de uma questão prática importante, raramente havia essa preocupação por parte dos magistrados, talvez por o destino das provas não ser primordial para eles, entre tantos outros aspectos processuais", admitiu.

Mas se os juízes se esqueciam de autorizar a destruição das amostras, ir-se-ão agora lembrar de dar ordem para a sua conservação? Frederico Moyano Marques, advogado e jurista da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), acredita que sim.

"Se um tribunal, perante um processo que ainda decorre, vir que as provas podem ser necessárias, certamente que dará indicação no sentido de que as mesmas fiquem guardadas" - defende o advogado, que alerta, no entanto, para outro problema associado à destruição.

"Um juiz pode ordenar a destruição de uma amostra por considerar que, com as técnicas actuais, não se pode extrair dela mais nenhuma informação e, dentro de uns anos, chegar-se à conclusão de que há meios novos aos quais a prova podia, com vantagem, ser submetida".

João Ferreira, outro advogado contactado pela agência Lusa, destacou, por seu lado, que "o problema que se coloca com os vestígios biológicos não é exclusivo deste tipo de prova".

"Sucede o mesmo com a droga apreendida e com as escutas telefónicas", afirmou, frisando que, "se os juízes mandam logo destruir as provas, o recurso de revisão pode ser afectado, o que interfere com o direito de defesa do arguido".

"Imagine-se que eu, enquanto advogado de defesa de um arguido num processo de narcotráfico, alego que o produto apreendido não era droga mas cânhamo? Como é que se vai tirar isso a limpo se o produto já foi destruído?" - questionou.

No que diz respeito às escutas, "quando o tribunal manda desmagnetizar as gravações, com vista a precaver usos indevidos dos registos, está a desfazer-se de informações que podem vir a ser necessárias também para a acção da defesa", concluiu João Ferreira.

in
Observatório do Algarve.

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