segunda-feira, abril 23, 2007

Desembargadores sem condições no Tribunal da Relação do Porto

Oitenta e quatro desembargadores e 17 gabinetes para trabalharem. O PRIMEIRO DE JANEIRO visitou a Relação do Porto e testemunhou o que já se sabe há muito: os desembargadores trabalham em casa por falta de condições. Aproveitando a ocasião, a conversa dispersou…

A autonomia dos juízes, a ausência de quem lhes organize uma agenda. De uma maneira geral, são donos de si próprios. Horários de trabalho, férias, feriados e fins-de-semana não são reguladores do tempo e do trabalho destes profissionais. Mas há preços que se pagam por essa liberdade. Ganhar menos que os advogados ou que os médicos foram alguns exemplos que a juíza desembargadora Isabel Pais Martins apontou a O PRIMEIRO DE JANEIRO. Enquanto era desenvolvida uma conversa descontraída – que acabaria por ser a três, uma vez que o presidente do Tribunal da Relação do Porto acabaria por se juntar ao que pretendeu ser um pequeno levantar do véu que esconde aquela classe com características de actuação tão próprias – visitámos a Relação da Invicta, para onde foram destacados, em 2006, 84 desembargadores e onde existem 17 gabinetes disponíveis para trabalharem. O JANEIRO visitou a Relação do Porto, mas situação semelhante de condições de trabalho é vivida nas outras quatro (Lisboa, Coimbra, Évora e Guimarães).
E é ali que está o verdadeiro espírito de serviço público. Ali se encontram os profissionais que não vêm muito para a rua reivindicar melhores condições, por exemplo, de trabalho, que, como se sabe, não são as melhores. Trabalhar em casa por não haver gabinetes que cheguem, nem terem as mínimas condições nos poucos escritórios que existem não é excepção, mas a regra. O que torna “indiferente” onde os juízes de 2.ª instância moram, uma vez que a obrigatoriedade de estarem no tribunal assenta numa presença semanal, daí a gestão de trabalho ser por conta dos juízes. Mas não é esta liberdade que atrasa a Justiça em Portugal. Porque, na sua grande maioria, “os juízes são competentes e responsáveis”, o que significa que não provocam demoras nos processos. O trabalho de juiz, e o de juiz desembargador em especial, “é um trabalho muito solitário. Mas de equipa”, realçou a juíza desembargadora que acompanhou a exploração do JANEIRO à Relação do Porto e foi esclarecendo de um modo muito natural o que para um leigo pode tomar contornos muito complexos. Este trabalho solitário, mas também de equipa, está sujeito, desde logo, “às condicionantes naturais do trabalho em grupo, obrigando a algum contacto mútuo”, mas também à interligação na entrega ao trabalho. O facto de serem donos do seu horário obriga os juízes “a uma disciplina muito rigorosa, até em questões de higiene de vida”, para não contribuir para as estatísticas que fazem já circular a metáfora – pelo menos entre a classe – de que «o desembargador passa a vida de pijama», pela falta de obrigação de cumprir horários e pelo facto de trabalharem, na sua maioria, em casa por falta de condições nos tribunais. Situação que representa uma grande poupança para o Estado. O juiz desembargador com quem o JANEIRO conversou especificou que “a poupança não é apenas nos gabinetes”, enquanto espaços físicos, mas tudo o que gira à volta da manutenção de um escritório de trabalho. Água, luz, fonte de energia de aquecimento, telefone e Internet são despesas que passam a ser pagas pelos juízes ao invés de saírem dos cofres do Estado. Arrendar ou comprar escritórios também não é raro entre os juízes desembargadores. Situações que se verificam “quando a casa não é o ideal para trabalhar”. O Estado fornece um portátil a cada juiz e o presidente da Relação do Porto não esqueceu de referir a pequena e recente vitória que representa o subsídio de 30 euros para Internet que cada desembargador aufere. O Estado cortou, porém, a assinatura do «Diário da República». Correia de Paiva lembrou que apesar de estar a ser pago aquele suplemento aos desembargadores do Porto, à altura da conversa com o JANEIRO, estava a ser confrontado com a falta de autorização pelas entidades competentes para tal transferência.

Lenta

A Justiça em Portugal é lenta, não anda. Este cliché existe. Os juízes reconhecem que os processo nem sempre andam como os intervenientes (eles incluídos) desejariam. Depois da explicação por quem já anda nisto há 30 anos percebe-se que é na burocracia que reside grande parte do problema. Que Portugal é muito burocrático é outro lugar-comum. Neste caso, porém, a burocracia existe por seguir “um ritual que tem que ser cumprido”, traduzindo-se num processo longo, mas que tem que ser respeitado para garantir que se faça justiça (ou a melhor justiça possível). A juíza desembargadora Isabel Pais Martins admitiu, todavia, que esse tempo longo possa servir para protelar o caso. “Mas isso é a excepção” foi a garantia dada de imediato, porque “bons e maus profissionais há-os em todas as profissões”. “Mas os bons são sempre em maior número”, quer acreditar. Da realidade que melhor conhece, a da Relação do Porto, a juíza nem hesita e mostra-se convencida que “a maioria dos desembargadores no Porto são competentes e empenhados em dar o devido tratamento aos processos”, o que implica – reitera – “ter o verdadeiro sentido de serviço público”. E é por este motivo que se adaptam às, muitas vezes, tão pouco dignas condições de trabalho.
Por sorteio, os processos são distribuídos pelo número de desembargadores disponíveis, que a maior parte das vezes não são em igual número aos destacados em Julho, devido a jubilações, atestados, falecimentos e licenças. Situações que não são antecipadas na distribuição dos juízes e que provocam desequilíbrios no rácio entre processos existentes e juízes a despachar, levando, muitas vezes, “a uma atribuição pouco razoável de trabalho”. Os movimentos de juízes são feitos uma vez por ano – em Julho, e a 15 de Setembro cada um está no «seu» tribunal –, mediante a previsão das necessidades para cada tribunal. Quando em 1999 foi criado o Tribunal da Relação de Guimarães explicou-se que visava aliviar o Tribunal da Relação do Porto. O juiz Correia de Paiva desconstruiu esta justificação. Naquela altura “havia 90 desembargadores no Porto que foram divididos pelas duas relações”, ficando 68 no Porto e 22 foram para Guimarães. Com este «desdobramento», “perderam-se dois desembargadores e meio a despachar”, já que cada relação tem um presidente e um vice-presidente que ficam com funções próprias do cargo, “que não são exactamente despachar processos”.

Alterações

No avançar da conversa, os juízes falaram da necessidade de haver mudanças no Código Penal. A conversa teve lugar no rescaldo de um Colóquio Internacional sobre o Combate à Corrupção, promovido pela Assembleia da República, onde o ministro da Justiça, Alberto Costa, considerou fundamental, do ponto de vista do combate à corrupção, a reforma em curso do conselho coordenador dos órgãos de polícia criminal. “Os progressos da investigação criminal frente à corrupção requerem especialização, mas exigem também cooperação e partilha de informação e é justamente neste sentido que vão as reformas em curso”, indicou, na altura, Alberto Costa. Ao que o juiz desembargador Correia de Paiva disse que “o crime não será resolvido com equipas de investigação”. E, categórico, explicou: “Há regras processuais que limitam a acção do juiz em tribunal”. Como por exemplo, “qualquer prova só pode servir para efeito de condenação se for produzida em julgamento”. Logo, qualquer investigação por muito sofisticada que seja, pode esbarrar na ausência de provas utilizáveis para condenação. Por isso é que a juíza Isabel Pais Martins diz que “é o pé descalço que se consegue condenar, o crime de colarinho branco continua muito difícil de condenar”. Reconhecendo a importância e necessidade da “existência de regras e limites” para assegurar julgamentos o mais justos possíveis, alerta que “se forem de tal modo rigorosos [as regras e limites] podem não permitir a condenação”. “Estamos a abrir caminho para lugares como Guantanamo e julgamentos em tribunais de excepção à semelhança dos EUA”. Todos de acordo com a necessidade de que os direitos e garantias sejam assegurados, contudo, quando o legislador diz que toda a prova só é válida quando for produzida em julgamento, passa um atestado de desconfiança aos poderes que antecedem a fase de julgamento.

----------------------

As decisões da 2.ª instância são de recurso

As decisões que se tomam nos tribunais de 2.ª instância (os tribunais de Relação) são de recurso, de uma maneira geral sem audiências e onde “o dramatismo já chega muito diluído”. Não há o contacto com os envolvidos, mesmo quando há a necessidade de audiências fazem-se só com o advogado e o Ministério Público, ou seja, são audiências com pessoal técnico. Os recursos avaliados na Relação dividem-se em secções, de acordo com as matérias de que tratam: criminal, cível e social (de trabalho). O acesso dos juízes à 2.ª instância só é possível depois de cerca de 20 anos de exercício da profissão na 1.ª instância e satisfazendo as condições impostas à progressão, como inspecções. Para aceder ao topo da carreira de juiz – ao Supremo Tribunal de Justiça, onde passam a chamar-se conselheiros – é, igualmente, necessário satisfazer pressupostos previamente conhecidos.
A juíza Isabel Pais Martins, 55 anos, é desembargadora no Tribunal da Relação do Porto depois do habitual percurso na 1.ª instância, onde gostou muito de trabalhar. Gosta de julgamentos e diz que “na sala de audiências está a vida”, a pessoa que aguarda o veredicto está frente-a-frente com o decisor do seu futuro. E esta presença física é bem diferente da “avaliação se a pena atribuída na 1.ª instância é adequada”, que aparece em papel, sem um rosto. Mas avançar na carreira é o passo natural e por isso conta avançar mais um degrau, que é chegar ao Supremo, ao qual podem concorrer juristas de mérito, juízes de carreira (onde se inclui) e magistrados do Ministério Público. Também passou pela Relação de Lisboa.

Redução de férias não aumenta eficácia

“Medida demagógica e popular”

Férias, feriados, fins-de-semana. São conceitos que não têm muito significado para os juízes, já que têm é que responder pelo trabalho que lhes é distribuído o que retira significado efectivo a um horário rigoroso. Por isso se sentiram mal tratados na questão das férias.

Levada a cabo pela primeira vez em 2006, a redução das férias foi uma medida “popular e demagógica”. Os adjectivos foram usados por muitos dos que criticaram a decisão. Por melhores condições de trabalho não reclamam, no que a juíza desembargadora Isabel Pais Martins apelida de “verdadeiro espírito de serviço público”, assumindo o papel de terceiro poder. Mas levantaram a voz contra o que consideraram “demagogia” e o presidente da Relação do Porto tem números que contradizem os resultados que o ministro da Justiça, Alberto Costa, e o próprio primeiro-ministro, José Sócrates, apresentaram em finais de Fevereiro. Primeiro-ministro e tutela consideraram “extraordinários” e “motivadores” os resultados atingidos em 2006. Os agentes do sector, no entanto, não se deixam convencer. Ao aumento de 57,3 por cento do número de processos concluídos em Julho, Agosto e Setembro de 2006 que o Executivo avançou, o presidente da Relação do Porto contrapõe com não mais de “um dia efectivo”. Mas José Correia de Paiva também sabe como se fazem as contas de forma a satisfazer cada posição: “Basta que em Julho de 2006, num tribunal qualquer, tenha havido uma resolução para podermos dizer que houve um aumento de cem por cento”. E o desembargador – que por força do desempenho das suas funções não despacha processos – nem precisa de recorrer a explicações muito extensas. Diz apenas que “até ao ano passado, nesse mês, não tinha havido nenhuma resolução”
O juiz presidente do Tribunal da Relação do Porto é categórico a afirmar que “a retirada de um mês de férias judiciais não corresponde a mais um mês de trabalho”. Disse-o a O PRIMEIRO DE JANEIRO. Já o havia escrito quando apresentou a estatística referente a 2006. Admite que no ano passado houve neste tribunal “aumento de distribuição e diminuição de pendências” em todas as secções. Recusa, em todo o caso, que se deva ao mês de férias que foi retirada, uma vez que “de 17 de Julho a 10 de Setembro só houve duas sessões por secção”. Na apresentação dos resultados do sistema judicial nos últimos dois anos (2005/2007), sob o tema «Justiça com iniciativa, Justiça com resultados», o ministro da Justiça disse que a diminuição dos processos pendentes nos tribunais portugueses, em 2006, “demonstra que o monstro [da pendência processual] é possível ser combatido”. Mas mais uma vez, o juiz José Correia de Paiva recusou que se deva à redução das férias. A maior produtividade do «seu» tribunal “resultou da atribuição de mais juízes auxiliares” e pela possibilidade de “a Relação destacar/requisitar oficiais de Justiça”. O juiz Correia de Paiva no balanço de 2006 apontou ainda “a superior qualidade e disponibilidade com que a Relação ficou constituída”.

Por Isabel Fernandes, in O PRIMEIRO DE JANEIRO.

Sem comentários: