"Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Excelência,
Tendo recebido para promulgação como lei o Decreto nº 130/X da Assembleia da República, que procede à primeira alteração à Lei nº 1/99, de 13 de Janeiro, que aprovou o Estatuto do Jornalista, decidi, nos termos da alínea b) do artigo 134º e do artigo 136º da Constituição da República Portuguesa, não promulgar aquele diploma, com os seguintes fundamentos:
1 – No quadro de uma sociedade aberta e pluralista, os diplomas relativos à actividade jornalística configuram-se sempre como essenciais para a estruturação de uma democracia de qualidade. Não por acaso, os constitucionalistas sublinham que, entre os domínios fundamentais da salvaguarda da liberdade de imprensa, garantida pela norma do artigo 46º da Constituição, se inscreve precisamente «a relevância do estatuto dos seus operadores, os jornalistas» (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pág. 434).
2 – Como é sabido, o diploma ora sujeito a promulgação concitou em seu torno uma vasta controvérsia, seja entre os partidos com expressão parlamentar, seja entre a classe dos jornalistas e suas organizações representativas, seja, enfim, entre empresários da comunicação social, quando seria aconselhável que sobre o mesmo fosse alcançado um entendimento mínimo, atenta a sensibilidade da matéria em causa.
3 – Tenho afirmado, em diversas ocasiões, que a clareza das políticas públicas é essencial para a qualidade da nossa democracia. Tal aconselha, pois, a que algumas das soluções normativas acolhidas no presente diploma sejam objecto de uma nova ponderação por parte dos Deputados à Assembleia da República, de modo a que o Estatuto do Jornalista entre em vigor sem que em seu torno subsistam dúvidas, nomeadamente quanto a aspectos tão essenciais como a quebra do sigilo profissional, os requisitos de capacidade para o exercício da profissão e o regime sancionatório instituído.
4 – Assim – e sem questionar a necessidade de quebra do sigilo profissional dos jornalistas em determinadas situações, já prevista, aliás, na legislação em vigor –, não posso deixar de assinalar que a norma do artigo 11º do Estatuto do Jornalista (adiante designado «Estatuto») permite interpretações divergentes, podendo abrir um espaço de indefinição e de insegurança jurídicas num domínio particularmente delicado, quer para o exercício da actividade jornalística, quer para a eficácia da acção penal.
Desde logo, não é suficientemente clara a conjugação entre o regime definido no artigo 11º do Estatuto e o previsto nas disposições do Código de Processo Penal em matéria de levantamento do sigilo profissional, em particular o artigo 135º deste Código, que alude expressamente ao segredo profissional dos jornalistas.
Vários elementos sugerem que não se pretendeu criar neste domínio uma disciplina jurídica específica para os jornalistas. Com efeito, no Estatuto não só não se prevê expressamente a derrogação das disposições do Código de Processo Penal como, pelo contrário, o nº 3 do artigo 11º contém o inciso «de acordo com o previsto na lei processual penal». Para mais, a alteração ao Código de Processo Penal, recentemente aprovada pela Assembleia da República, mantém expressamente a inclusão dos jornalistas no regime definido pelo artigo 135º daquele Código.
Contudo, o artigo 11º do Estatuto contém, no que se refere à quebra do sigilo profissional, um conjunto de pressupostos cuja articulação com a lei processual penal não é inteiramente evidente, como seria desejável dado o especial melindre de que se reveste, para o exercício da actividade jornalística, a revelação das respectivas fontes de informação. Assim, não é líquido se um tribunal apenas pode ordenar a revelação das fontes de informação nos casos previstos no nº 3 daquele artigo 11º ou se, como sucede na generalidade das profissões (ex. advogados, médicos, membros de instituições de crédito), o pode fazer nos termos da lei geral.
Por outro lado, a enunciação dos pressupostos que permitem a obrigatoriedade da revelação das fontes é feita de forma pouco precisa de um ponto de vista técnico-jurídico, recorrendo-se a expressões como «crimes graves» ou «casos graves» («casos graves de criminalidade organizada») que são indubitavelmente potenciadoras de incerteza e de insegurança jurídicas.
5 – Permanece ainda por esclarecer, nos seus exactos contornos, se corresponde à solução mais adequada e proporcionada restringir o acesso à profissão a quem seja titular de habilitação académica de nível superior – sem que a razão de ser de tal exigência seja explicitada, uma vez que a mesma não incide sobre uma habilitação específica na área da Comunicação Social ou numa área conexa. Não existindo tal exigência em concreto, torna-se, pois, pouco compreensível o estabelecimento de um requisito que, por si só, não parece garantir a priori uma maior qualidade ou aptidão para o exercício específico da profissão de jornalista. Além disso, esse requisito, tal como enunciado no artigo 2º, nº 1, do Estatuto, ao exigir a contratação de profissionais detentores de uma habilitação académica de nível superior, pode comportar um acréscimo das despesas de pessoal que, no limite, irá porventura ameaçar a viabilidade das pequenas ou médias empresas da área da comunicação social (ex. rádios locais ou imprensa regional), o que implica uma inquestionável compressão do pluralismo informativo e da liberdade de iniciativa económica.
Assim, seria útil ponderar se neste domínio não deveria, ao invés, prevalecer uma lógica de auto-regulação, que garantisse, quer às empresas de comunicação social quer aos jornalistas, um maior espaço de liberdade e de flexibilidade no acesso à profissão.
6 – Não é também particularmente claro o regime sancionatório instituído, sobretudo quando cotejado com os aplicáveis a outras actividades profissionais. As razões que ditam este regime específico não se encontram razoavelmente explicitadas, nem foram satisfatoriamente esclarecidas no decurso do processo que conduziu à aprovação do presente diploma.
Na verdade, a graduação das sanções é determinada em função da culpa do agente, mas a sua aplicabilidade obedece a um esquema, previsto no artigo 21º do Estatuto, nos termos do qual a determinação concreta de certas penas depende da existência de sanções anteriores.
Deste modo, e ao invés do que resultaria dos princípios gerais em matéria sancionatória, a aplicação das sanções não fica dependente em exclusivo da apreciação da gravidade da conduta e do grau de culpa do agente. É possível, por conseguinte, que um jornalista pratique um ilícito extremamente grave, com um muito elevado grau de culpa, e a esta conduta só possa aplicar-se a pena mais leve – a advertência registada – enquanto outro jornalista, tendo praticado uma infracção menos grave e com um grau de culpa substancialmente inferior, pode ser suspenso do exercício da actividade profissional. Ou seja, para efeitos de aplicação concreta das penas atribui-se um peso que não pode deixar de considerar-se excessivo à circunstância de o agente ter sido, nos três anos precedentes, objecto de outras sanções disciplinares. Tal representa uma clara limitação da competência, atribuída à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, para decidir livremente e aplicar as sanções que tiver por adequadas em função das circunstâncias concretas dos casos submetidos à sua apreciação, ou seja, em função da gravidade da conduta e do grau de culpa do agente.
Importaria, pois, não só evitar uma limitação infundada ao juízo sancionatório que compete à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista mas ainda assegurar uma relação de conformidade lógica entre a gravidade da conduta e o grau de culpa do agente e os pressupostos de cada sanção aplicável.
Ante o exposto, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 134º, alínea b), e 136º, nº 1, da Constituição da República, decidi não promulgar como lei o Decreto nº 130/X da Assembleia da República, solicitando, pelos fundamentos apresentados, uma nova apreciação do citado diploma.
Com elevada consideração
O Presidente da República
Aníbal Cavaco Silva
Excelência,
Tendo recebido para promulgação como lei o Decreto nº 130/X da Assembleia da República, que procede à primeira alteração à Lei nº 1/99, de 13 de Janeiro, que aprovou o Estatuto do Jornalista, decidi, nos termos da alínea b) do artigo 134º e do artigo 136º da Constituição da República Portuguesa, não promulgar aquele diploma, com os seguintes fundamentos:
1 – No quadro de uma sociedade aberta e pluralista, os diplomas relativos à actividade jornalística configuram-se sempre como essenciais para a estruturação de uma democracia de qualidade. Não por acaso, os constitucionalistas sublinham que, entre os domínios fundamentais da salvaguarda da liberdade de imprensa, garantida pela norma do artigo 46º da Constituição, se inscreve precisamente «a relevância do estatuto dos seus operadores, os jornalistas» (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pág. 434).
2 – Como é sabido, o diploma ora sujeito a promulgação concitou em seu torno uma vasta controvérsia, seja entre os partidos com expressão parlamentar, seja entre a classe dos jornalistas e suas organizações representativas, seja, enfim, entre empresários da comunicação social, quando seria aconselhável que sobre o mesmo fosse alcançado um entendimento mínimo, atenta a sensibilidade da matéria em causa.
3 – Tenho afirmado, em diversas ocasiões, que a clareza das políticas públicas é essencial para a qualidade da nossa democracia. Tal aconselha, pois, a que algumas das soluções normativas acolhidas no presente diploma sejam objecto de uma nova ponderação por parte dos Deputados à Assembleia da República, de modo a que o Estatuto do Jornalista entre em vigor sem que em seu torno subsistam dúvidas, nomeadamente quanto a aspectos tão essenciais como a quebra do sigilo profissional, os requisitos de capacidade para o exercício da profissão e o regime sancionatório instituído.
4 – Assim – e sem questionar a necessidade de quebra do sigilo profissional dos jornalistas em determinadas situações, já prevista, aliás, na legislação em vigor –, não posso deixar de assinalar que a norma do artigo 11º do Estatuto do Jornalista (adiante designado «Estatuto») permite interpretações divergentes, podendo abrir um espaço de indefinição e de insegurança jurídicas num domínio particularmente delicado, quer para o exercício da actividade jornalística, quer para a eficácia da acção penal.
Desde logo, não é suficientemente clara a conjugação entre o regime definido no artigo 11º do Estatuto e o previsto nas disposições do Código de Processo Penal em matéria de levantamento do sigilo profissional, em particular o artigo 135º deste Código, que alude expressamente ao segredo profissional dos jornalistas.
Vários elementos sugerem que não se pretendeu criar neste domínio uma disciplina jurídica específica para os jornalistas. Com efeito, no Estatuto não só não se prevê expressamente a derrogação das disposições do Código de Processo Penal como, pelo contrário, o nº 3 do artigo 11º contém o inciso «de acordo com o previsto na lei processual penal». Para mais, a alteração ao Código de Processo Penal, recentemente aprovada pela Assembleia da República, mantém expressamente a inclusão dos jornalistas no regime definido pelo artigo 135º daquele Código.
Contudo, o artigo 11º do Estatuto contém, no que se refere à quebra do sigilo profissional, um conjunto de pressupostos cuja articulação com a lei processual penal não é inteiramente evidente, como seria desejável dado o especial melindre de que se reveste, para o exercício da actividade jornalística, a revelação das respectivas fontes de informação. Assim, não é líquido se um tribunal apenas pode ordenar a revelação das fontes de informação nos casos previstos no nº 3 daquele artigo 11º ou se, como sucede na generalidade das profissões (ex. advogados, médicos, membros de instituições de crédito), o pode fazer nos termos da lei geral.
Por outro lado, a enunciação dos pressupostos que permitem a obrigatoriedade da revelação das fontes é feita de forma pouco precisa de um ponto de vista técnico-jurídico, recorrendo-se a expressões como «crimes graves» ou «casos graves» («casos graves de criminalidade organizada») que são indubitavelmente potenciadoras de incerteza e de insegurança jurídicas.
5 – Permanece ainda por esclarecer, nos seus exactos contornos, se corresponde à solução mais adequada e proporcionada restringir o acesso à profissão a quem seja titular de habilitação académica de nível superior – sem que a razão de ser de tal exigência seja explicitada, uma vez que a mesma não incide sobre uma habilitação específica na área da Comunicação Social ou numa área conexa. Não existindo tal exigência em concreto, torna-se, pois, pouco compreensível o estabelecimento de um requisito que, por si só, não parece garantir a priori uma maior qualidade ou aptidão para o exercício específico da profissão de jornalista. Além disso, esse requisito, tal como enunciado no artigo 2º, nº 1, do Estatuto, ao exigir a contratação de profissionais detentores de uma habilitação académica de nível superior, pode comportar um acréscimo das despesas de pessoal que, no limite, irá porventura ameaçar a viabilidade das pequenas ou médias empresas da área da comunicação social (ex. rádios locais ou imprensa regional), o que implica uma inquestionável compressão do pluralismo informativo e da liberdade de iniciativa económica.
Assim, seria útil ponderar se neste domínio não deveria, ao invés, prevalecer uma lógica de auto-regulação, que garantisse, quer às empresas de comunicação social quer aos jornalistas, um maior espaço de liberdade e de flexibilidade no acesso à profissão.
6 – Não é também particularmente claro o regime sancionatório instituído, sobretudo quando cotejado com os aplicáveis a outras actividades profissionais. As razões que ditam este regime específico não se encontram razoavelmente explicitadas, nem foram satisfatoriamente esclarecidas no decurso do processo que conduziu à aprovação do presente diploma.
Na verdade, a graduação das sanções é determinada em função da culpa do agente, mas a sua aplicabilidade obedece a um esquema, previsto no artigo 21º do Estatuto, nos termos do qual a determinação concreta de certas penas depende da existência de sanções anteriores.
Deste modo, e ao invés do que resultaria dos princípios gerais em matéria sancionatória, a aplicação das sanções não fica dependente em exclusivo da apreciação da gravidade da conduta e do grau de culpa do agente. É possível, por conseguinte, que um jornalista pratique um ilícito extremamente grave, com um muito elevado grau de culpa, e a esta conduta só possa aplicar-se a pena mais leve – a advertência registada – enquanto outro jornalista, tendo praticado uma infracção menos grave e com um grau de culpa substancialmente inferior, pode ser suspenso do exercício da actividade profissional. Ou seja, para efeitos de aplicação concreta das penas atribui-se um peso que não pode deixar de considerar-se excessivo à circunstância de o agente ter sido, nos três anos precedentes, objecto de outras sanções disciplinares. Tal representa uma clara limitação da competência, atribuída à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, para decidir livremente e aplicar as sanções que tiver por adequadas em função das circunstâncias concretas dos casos submetidos à sua apreciação, ou seja, em função da gravidade da conduta e do grau de culpa do agente.
Importaria, pois, não só evitar uma limitação infundada ao juízo sancionatório que compete à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista mas ainda assegurar uma relação de conformidade lógica entre a gravidade da conduta e o grau de culpa do agente e os pressupostos de cada sanção aplicável.
Ante o exposto, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 134º, alínea b), e 136º, nº 1, da Constituição da República, decidi não promulgar como lei o Decreto nº 130/X da Assembleia da República, solicitando, pelos fundamentos apresentados, uma nova apreciação do citado diploma.
Com elevada consideração
O Presidente da República
Aníbal Cavaco Silva
03.08.2007"
Fonte: Presidência da República
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