domingo, março 02, 2008

Depressa de mais

Por Dr. Rui Rangel (Juiz Desembargador TRL)
in
Correio da Manhã

"Fazer depressa de mais uma reforma desta importância, é caminhar para as trevas.

A reforma da geografia orgânica dos tribunais, comummente conhecida por ‘Mapa Judiciário’, está em fase de discussão pública. É o momento de pedir ao Governo que, antes de avançar, “pare, escute e reflicta”, porque ela constitui a mais importante medida legislativa, a medida verdadeiramente estruturante da ‘vida’ da Justiça, a ser tomada pelo Governo Sócrates. Sabido que é consensual que a actual Orgânica Territorial da Justiça está obsoleta e ultrapassada porque foi feita para um outro País e para uma outra realidade da Justiça, tal não legitima que o executivo ande depressa de mais, subordinado a uma lógica de cumprimento do seu programa de governo.

É verdade que as eleições estão à porta! O programa de governo é, em princípio, para uma legislatura, mas esta reforma é para a vida da Justiça, que se deseja seja longa e duradoura. A arrogância parlamentar, que decorre da lógica de funcionamento da maioria, exige a montante uma cultura de humildade democrática da parte do poder governativo, adoçada por uma ética de responsabilidade. Os juízes não são, por princípio, contra a mudança de paradigma, que imprima ao serviço público da Justiça uma maior racionalidade, uma mais eficaz operacionalidade na resposta e uma maior eficiência dos serviços que são prestados ao cidadão. Apesar de, a jusante de muitas reformas feitas, os juízes terem tido razão porque criticaram o caminho seguido, com apresentações de sugestões que não foram acolhidas, receiam e estão preocupados que o tempo deste legislador, que ouve, mas não acolhe, se esgote num presente estéril, sem memória nem projecto que traga o tal paradigma.

O legislador não pode ser o dono do tempo do Direito e da Justiça. O que se exige de quem tem o poder de legislar é que tenha amor pelos valores e respeite os princípios estruturantes do exercício nobre da função judicial. A defesa dos valores da inamovibilidade, do juiz natural, do respeito pelo não desaforamento processual, de uma Justiça de proximidade e da independência interna do juiz são um garantia da democracia e de um sistema de pesos e contrapesos que deve existir entre os diferentes órgãos de soberania.

O discurso neoliberal e tecnocrático da Justiça, de uma Justiça optimizada e com maiores ganhos de produtividade tem de ‘casar’ com a defesa destes valores simbólicos, enquanto direitos fundamentais. Se não for dinamizada a discussão pública, se não se der tempo ao tempo, se não se alargar o arco de consensos, entre partidos políticos com assento parlamentar e toda a comunidade jurídica, será cometido o erro do século, com consequências arrasadoras, na medida em que esta reforma vai soçobrar às mãos da Justiça Constitucional.

Vem-me à ideia esta frase de Tocqueville: “Uma vez que o passado já não ilumina o futuro, o espírito caminha nas trevas.” Fazer depressa de mais uma reforma desta importância e dimensão é caminhar para as trevas, associando-lhe um destino sombrio e pouco transparente. É nesta sabedoria e inteligência no fazer e como fazer que se distingue, desde os gregos, o bom do mau governo.

(...)"

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