domingo, julho 27, 2008

A lei do divórcio "não foi feita para proteger a família"

Não há manifestações de rua como quando, em 1910, a I República abriu as portas ao divórcio por mútuo consentimento. Mesmo assim, a nova lei do divórcio abriu brechas profundas entre os magistrados e pôs as associações pró-família a temer pelo casamento, criando um ruído de fundo que surpreendeu até os autores da própria lei.

"A ideia de que as leis do divórcio têm muita influência sobre a família não faz sentido nenhum, porque, no momento do divórcio, a família já está estragada. Por isso, senti uma surpresa enorme quando ouvi gente queixar-se que esta lei não protege a família", reagiu ao PÚBLICO o professor Guilherme de Oliveira que, juntamente com a socióloga Anália Torres, ajudou a desenhar o regime agora proposto pelo PS.

Para este professor de Direito da Família na Universidade de Coimbra, "o que é determinante para proteger a família não é uma lei do divórcio, mas toda uma ecologia da família: o bairro onde as pessoas vivem ter equipamentos, os pais não terem que viajar duas horas para deixar as crianças no infantário, a existência de emprego..." Em síntese, "tudo o que torne a vida da família mais ou menos confortável", precisa, numa tentativa de dar a volta ao enredo de uma novela que promete voltar a bater picos de audiência, quando Cavaco Silva tiver que decidir se promulga a lei ou se a devolve ao Parlamento.

O desfecho é imprevisível já que o próprio Presidente da República foi dos primeiros a alertar para os cuidados a ter no divórcio no respeitante à estabilidade das famílias e dos filhos menores. E Cavaco não tinha ainda recebido o abaixo-assinado onde advogados e juízes argumentam que o novo regime vai aumentar a litigância nos tribunais. Nem a petição colocada online pelo Fórum da Família, que na sexta-feira já contava 5000 assinaturas e segundo a qual a nova lei deixa as mulheres desprotegidas.

Guilherme de Oliveira garante que não. E que o que a nova lei faz é "tornar o divórcio um processo menos traumático". "Só o facto de se acabar com a prova de culpa diminui muito a litigiosidade", diz. "Se não tivessem reduzido a zero o conhecimento de quem lida com a realidade destes problemas, teriam percebido que estamos a caminhar para uma péssima solução", contrapõe António Martins, presidente da Associação Sindical dos Juízes.

Menos ódio

A advogada Rita Sassetti também acha que "quem estava desprotegido vai ficar ainda mais desprotegido" com a nova lei, um diploma "feito em cima do joelho e que, em teoria até tem uns princípios engraçados, mas impossíveis de levar à prática". Já Helena Gersão, do Centro de Direito da Família da Universidade de Coimbra, diz que as novas regras abrem soluções "de menos ódio do que a lei actual em que um cônjuge para conseguir o divórcio tem que se agarrar a todos os pecadilhos que o outro tenha cometido no âmbito do casamento".

Mas, afinal, quais são as alterações que a lei introduz? Uma das mais radicais prende-se com o desaparecimento do "poder parental" que é substituído pelas "responsabilidades parentais". Tradução: os dois progenitores passam a ter igual direito de decisão nos "actos de particular importância" na vida dos filhos, independentemente de quem fica com a guarda. "É uma medida muito boa que vem ao encontro das reivindicações dos pais divorciados que se sentem excluídos da vida dos filhos", reage Helena Gersão, não antevendo aqui qualquer aumento da litigância. "A lei é muito cautelosa e aqui a alternativa seria afastar um dos progenitores da vida do filho. Isso é melhor?"

Não será. Mas, para Rita Sassetti, advogada com 20 anos de experiência em questões do direito familiar, este raciocínio ignora o que se passa nos tribunais. "Não me admirará nada que, a seguir, os tribunais comecem a ser entupidos com processos destinados a determinar se o filho deve ir para uma escola pública ou privada, para a natação ou para o karaté", declara, preocupada com o risco de as crianças serem "ainda mais usadas como arma de arremesso, sobretudo na fase inicial do divórcio, em que qualquer motivo é bom para chatear o outro". Para a advogada "o bom senso de que os pais precisam para educar os filhos não é algo que possa ser imposto por decreto-lei". Assim, Sassetti lamenta que a lei não tenha apostado mais nos gabinetes de mediação familiar e nos psicólogos forenses.

Intromissão do Estado

No tocante aos efeitos patrimoniais, a partilha dos bens passará a fazer-se como se os cônjuges tivessem casado em comunhão de adquiridos, mesmo que o regime convencionado tenha sido a comunhão geral. "A lei vem desligar o dinheiro do casamento, evitando que o divórcio se torne um meio para adquirir bens", sustenta Guilherme de Oliveira. Mas, para António Martins, trata-se de uma inaceitável intromissão do Estado na esfera pessoal dos cidadãos. "Será que o Estado pode impor uma coisa destas? Uma pessoa, maior de idade, não devia ser livre para casar e para deixar que o outro, pelo esforço desse casamento, entre no seu património em termos de titularidade?", questiona o desembargador, recordando que "o casamento é um contrato". As pessoas deviam ser livres de estabelecer as cláusulas que considerem mais favoráveis "desde que não violem princípios básicos".

Igualmente polémica é a questão dos "créditos de compensação". Estes prevêem que, no momento da dissolução do casamento, o cônjuge que mais contribuiu para os encargos da vida familiar fique credor do outro. Sobre esta questão, Guilherme de Oliveira garante que tais "créditos" não podem, em circunstância nenhuma, ser reclamados por alguém que recebia três vezes mais do que o cônjuge, conforme sustenta também Helena Gersão. "Se o homem ganha dois mil euros e a mulher mil, o homem tem a obrigação de contribuir com o dobro para a economia familiar e não lhe advém nenhum crédito especial por causa disso", afirma aquela especialista, explicando que o que a lei prevê é que cada um contribua "em harmonia com as suas possibilidades".

Guilherme de Oliveira recorda que "os créditos foram criados para responder às mulheres que se desempregaram para cuidar da família, que não acabaram os seus cursos, ou que não foram promovidas na sua carreira porque a família lhes retirava tempo para investir na profissão e que, por isso, auferem ordenados mais baixos, fazem menos descontos para a Segurança Social e, no fim, recebem reformas mais baixas". "Nestes casos", acrescenta, "pode entender-se que houve uma contribuição manifestamente excessiva da mulher, que, por isso, pode merecer um crédito de compensação." Já António Martins não acredita na exequibilidade do princípio. "Como é que quantificamos a prestação da senhora que sacrificou a vida pessoal e profissional por causa da família?", questiona. "Não é verdade que os tribunais sabem quantificar quanto vale uma vida?", devolve, por seu turno, Guilherme de Oliveira.

Por Natália Faria, in PUBLICO.PT

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