domingo, setembro 12, 2010

Crime continuado

Por Prof. Dr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE

(in DN Online)

"A semana passada não teve uma, mas duas revisões do Código Penal. Na sexta-feira saiu a vigésima sexta revisão, depois de ter sido publicada na quinta a vigésima quinta alteração daquele Código. Duas revisões do Código Penal em dois dias seguidos! Esta avalanche legislativa numa matéria tão sensível como a do direito penal deveria ser motivo de escândalo num Estado de direito. Mais ainda quando a lei vem alterar o regime do crime continuado no dia em que se procedeu à leitura do acórdão no processo Casa Pia.

A revisão do Código Penal de 2007 introduziu um n.º 3 no artigo 30.º do CP, que excluía do regime do crime continuado os crimes relativos a bens jurídicos eminentemente pessoais, "salvo tratando-se da mesma vítima". Esta regra já tinha sido proposta na comissão de revisão do CP por Maia Gonçalves relativamente à continuação de crimes que violem bens jurídicos pessoais quando seja visada a mesma vítima, o que, segundo Eduardo Correia, já resultava da expressão "mesmo bem jurídico". A exclusão do crime continuado em relação a bens eminentemente pessoais de várias vítimas era consensual.

Mas a aplicação do crime continuado quando os bens eminentemente pessoais pertencessem à mesma vítima não é, nem nunca foi, consensual. Ela foi muito justamente contestada, sobretudo quando os crimes fossem acompanhados de ameaça grave, violência, abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela ou de uma dependência hierárquica, económica ou de trabalho ou aproveitamento de temor causado sobre a vítima. Nestes casos falta a diminuição sensível da culpa do agente, que é pressuposto do próprio crime continuado. A crítica não foi só da doutrina. Também os acórdãos do STJ, de 25.3.2009, e de 25.6.2009, decidiram não aplicar o crime continuado nestes casos, com base no respeito pela dignidade humana da vítima.

A nova revisão do CP de sexta- -feira da semana passada atendeu ao coro de críticas da doutrina e suprimiu a expressão "salvo tratando-se da mesma vítima". Destarte, o legislador pôs fim à figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica, pois, restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas. Assim, os crimes contra as pessoas não podem ser subsumidos à figura do crime continuado, independentemente do número de vítimas e do modo de execução do crime.

Mais uma vez se mostra que o legislador reparou em 2010 um outro erro legislativo da reforma de 2007. Pena foi que não tivesse levado a empreitada até ao fim e tivesse aproveitado a ocasião para suprimir definitivamente a figura do crime continuado. Em próxima revisão ficará ainda mais esta omissão por suprir.

Acresce que a revisão de sexta coincidiu com a leitura de acórdão do processo Casa Pia, em que se discute precisamente a aplicabilidade do regime do crime continuado. Não é próprio de um Estado de direito que o legislador publique uma lei sobre um instituto jurídico crucial para uma decisão judicial concreta no momento em que se aguarda essa decisão. Soa a uma lei penal intuitu personae, isto é, feita para atingir destinatários concretos e não a generalidade dos cidadãos, o que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não tolerou noutros casos."

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