domingo, dezembro 27, 2009

“Eu não mando nos processos”

Discreto, avesso às luzes da ribalta, o juiz do tribunal central de instrução criminal, por onde passam os casos de criminalidade complexa, defende leis mais claras contra a corrupção.


Decisões duras trouxeram-no para uma ribalta que sempre recusou. O juiz Carlos Alexandre prendeu Oliveira e Costa, no caso BPN, o que o coloca na história da justiça portuguesa. Mais recentemente também aplicou prisão preventiva ao suspeito de matar à bomba um empresário da noite. Foi alvo de vários incidentes de recusa nos casos ‘Apito Dourado’, ‘Portucale’ e, ainda, na ‘Operação Furacão’ e por Maria das Dores, a figura do jet-set que matou o marido. No essencial, o juiz Carlos Alexandre, de 48 anos, deu força, visibilidade e dimensão institucional ao Tribunal Central de Instrução Criminal, por onde passam os casos de criminalidade mais complexa. Eleito como Figura Nacional do Ano pela redacção do ‘CM’ acedeu, a muito custo, conceder esta entrevista. Recusa falar de casos concretos ou mesmo proferir qualquer frase que possa ser entendida como uma referência a eles. Já os valores que o levaram para a magistratura são outra conversa. Por isso, explica aqui o seu entendimento sobre a independência do poder judicial e a igualdade dos cidadãos perante a lei.

A justiça é mesmo cega?

A justiça é feita por homens e, por isso, é uma actividade falível. É menos falível quando há mais e melhores meios.

A justiça é forte com os fracos e fraca com os fortes?

Todos nós temos uma percepção das decisões a que assistimos ou intuímos que pode reconduzir-se a essa ideia. Eu prefiro lembrar ou constatar o que alguns têm dito sobre os alçapões que, por vezes, acompanham as leis. E, obviamente, o facto de eles integrarem uma legislação que, em teoria, causa mais problemas a pessoas com alguma influência económica e social do que a outras com menos recursos.

Pessoas que também têm maior capacidade de escrutínio da própria justiça...

O que eu vejo é uma certa cultura e uma certa necessidade de alguns intervenientes, em processos ou apenas na esfera mediática, em escrutinar cada decisão como se em cada uma delas radicasse o desfecho definitivo do caso.

Que escrutínio é esse?

Algumas pessoas, não sei porquê, têm tido em relação a muita gente que trabalha no poder judicial uma grande desconfiança. É preciso não esquecer que o nosso trabalho é escrutinado por toda a gente.

Sente o seu trabalho escrutinado?

A mais singela decisão é diariamente escrutinada...

Há vozes que pedem uma fiscalização reforçada...

Sim, e algumas de prestigiados e influentes jurisconsultos, que chegam mesmo a dizer que os magistrados não têm legitimidade electiva e querem saber de onde vêm as pessoas que despacham nos processos, qual o seu passado...

Sente-se interpelado por isso?

Não, mas, como são comentários feitos em função de processos do tipo dos que passaram ou passam pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, de algum modo isso também me toca. Mas admito que seja uma posição de princípio desses ilustres juristas.

Mas como se sente objectivamente escrutinado?

Sinto-me eu, como se sentem os 1800 juízes portugueses. Quanto a mim, até pode parecer ridículo mas é verdade: sinto-me escrutinado, desde logo, em casa, pelos meus familiares, até pela atenção e disponibilidade que presto ao meu trabalho. Depois, sou escrutinado pelos funcionários com quem trabalho, até porque a relação é excelente e sempre que incorro em qualquer incoerência são os próprios a darem-me nota disso, de uma forma bastante simpática.

Seguindo uma lógica sequencial diária, como quem sai de casa, vêm depois os senhores utentes do tribunal que também verificam o comportamento de quem sobre eles toma decisões e sobre elas reage. Há ainda os senhores advogados intervenientes, neste tribunal ou noutro. Hoje em dia estão organizados em sociedades que são verdadeiros ‘think-thank’ a respeito de especialidades concretas...

Isso é já um escrutínio mais forte?

... é pelo menos mais organizado. Nesses processos, qualquer decisão é analisada à lupa por especialistas desses escritórios que, noutras sedes, têm o estatuto de órgãos de consulta em matérias de contratação pública, parcerística, etc..

Tem aí a fiscalização no processo.

Não estou a hierarquizar mas apenas a fazer um exercício a partir das 24 horas de um dia, como quem sai de casa. Há, depois, o Ministério Público, que é promotor de muitas decisões e destinatário indirecto de algumas delas. Há ainda o escrutínio fundamental dos tribunais superiores, as Relações, o Supremo e o Constitucional, este cada vez mais frequente e que é cada vez mais um alçapão...

Tem, também, o Conselho Superior de Magistratura.

... mas esse não tem interferência directa nas decisões dos processos. A cada passo é solicitada a intervenção do Conselho. Por atrasos, comportamentos, sentidos de decisão, etc. Neste momento, aliás, a composição do Conselho é aquela que é conhecida e há até casos em que decido, designadamente de suspensão provisória de processos – por promoção do MP – nos quais intervêm advogados que são simultaneamente membros deste órgão.

Podem, em teoria, decidir sobre a sua carreira...

Mais tarde... mas não apenas da minha, também de todos os juízes que tenham intervenção nos seus processos. Não que isso me tolha mas não deixo de registar esse facto. É mais uma forma de escrutínio. É um duplo escrutínio. Esses advogados têm os seus clientes e a defesa dos interesses destes e, ao mesmo tempo, são meus escrutinadores porque podem ser chamados a pronunciar-se sobre qualquer acto meu, questões de gestão e disciplina. Repare, os advogados membros do Conselho eleitos pela Assembleia da República têm intervenção em vários casos, não apenas mediáticos. É mais um escrutínio sobre o trabalho do magistrado. Não o enjeito mas não me inibo por ele. É apenas mais uma perplexidade que constato.

E há o escrutínio dos media...

Os órgãos de Comunicação Social já não são o quarto poder mas não deixam de ser um poder. Por fim, temos as chamadas instâncias formais de controlo. Lembro-me sempre de uma pessoa da minha terra, que foi da PSP, e que frequentemente me cita uma frase de Carmona para Salazar na posse deste: 'Vexa governará o País com o que está e com o que resta mas não mexa no Estado paralelo.' Portanto, há muitas instâncias de influência, de inteligência, de poder, que escrutinam o trabalho dos magistrados sem que elas próprias sejam, eventualmente, fiscalizadas...'

Sente que a fiscalização sobre si é mais pessoal ou profissional?

Eu sou apenas uma peça da engrenagem, mas lembro-me de, quando foi assaltada a minha casa, em Agosto de 2007, me ter sido dito: 'Se pensar bem sabe quem lhe está a fazer isto!'

A partir daí, como sei o estado em que ficou a minha casa e cada papel que eu tinha no meu escritório, percebo muito bem o que se pode querer significar com esse escrutínio pessoal... Na medida em que tenho a incumbência de decidir em alguns processos, posso ser alvo desse tipo de interesse.

Pensa que o poder judicial está sob suspeita?

Não diria tanto... É curioso que há uns anos atrás, sempre que alguém era chamado a prestar declarações ou visado pela justiça, costumava dizer: 'Eu confio absolutamente na justiça e sei que tudo se há-de esclarecer!' Hoje em dia já é frequente, inclusive decisores políticos, a dizerem: 'Não me está a ouvir dizer que confio na justiça.' Por outro lado, vejo alguns responsáveis políticos claramente a tomarem posições sobre decisões dos tribunais antes de serem conhecidas decisões finais. Vejo com preocupação, até, responsáveis ligados a direcções partidárias, não respeitando os tempos próprios que as decisões têm para ser conhecidas e escrutinadas, até pelos tribunais superiores.

A justiça tornou-se território da luta política?

Isso é mais visível com decisões da primeira instância...

Mas como equaciona hoje a independência da justiça?

Já tivemos, no passado recente, uma clara tentativa de funcionalização que punha os magistrados a responder perante as normas da Função Pública. Isso foi depois objecto de alguma atenção por parte dos media, das associações sindicais da justiça, e houve um processo de sensibilização que evitou que tal fosse por diante. Implicava isso, obviamente, uma alteração do entendimento vigente sobre o conceito de independência.

Menos um poder, mais um serviço?

Sim, essa tese não vingou naquele momento mas não quer dizer que, à semelhança do que se vê agora, em Itália, com Berlusconi, outros não se sintam tentados a seguir tal exemplo. Para mim, a independência, nos meus 48 anos e 25 de cálculo para a aposentação, é sobretudo um estado de espírito. É contrário a um sentimento de pertença a qualquer coisa. Nestes anos, a única coisa e corporação a que pertenci foi à dos bombeiros, na terra da minha mulher. É um conceito indeterminado e, por isso, cada um tem de o assumir por si próprio. Costumo dizer isso nos incidentes de recusa de que tenho sido alvo em alguns processo...'

Quantos foram?

Uns quatro ou cinco. Os fundamentos, além de técnicos, apontavam o facto de eu conhecer bem os processos... Mas a independência é um estado de espírito, é uma práxis e um exercício de contenção. Estou bem consciente das limitações do que posso dizer em relação a processos, como também do que posso fazer na vida pública, com quem tomo café, almoço ou janto. A minha vida é bastante frugal. Posso dar conta das pessoas com quem almocei ou jantei, pudera que outros o possam fazer no futuro porque não há mesmo almoços grátis.

A lei também lhe impõe essa reserva.

Há uma deliberação do Conselho Superior de Magistratura sobre o dever de reserva, datada de 11 de Março de 2008, que põe balizas muito apertadas quanto à possibilidade de intervenção pública dos magistrados, mas a reserva que me imponho na minha conduta pública e privada tem muito que ver com a forma como encaro as minhas funções e os seus riscos e perigos.

O que pensa do debate sobre a corrupção?

Espero que a comissão parlamentar agora aprovada venha tranquilizar-me a mim e aos portugueses porque estamos ávidos de uma clarificação desta legislação em matéria de corrupção e enriquecimento ilícito...

Defende a criação do crime de enriquecimento ilícito?

Falei sobre isso há uns meses, no Porto, e mantenho o que disse: sei que isso é quase uma opinião de lesa-majestade mas não temo a inversão do ónus da prova. Nestas matérias volto sempre ao ‘quem não deve não teme’. Portanto, como estou disposto a ser escrutinado em todo o meu património, desde que nasci, não me causa qualquer rebuço.

Essa posição não é consensual...

Sei que esta posição não é consensual. Há dias, o general Garcia dos Santos deu uma entrevista em que dizia que, por ter mau feitio, esteve muitos anos silenciado. Acantonado! E dizia sobre estas matérias uma coisa simples: quem tiver responsabilidades deve ser chamado por elas. Aquilo a que Maria José Morgado chama: pegar o toiro pelos cornos! Ninguém pega o toiro pelos cornos, disse ela na Rádio Renascença. Porque a questão é esta: como é que certas pessoas explicam a forma como decuplicam o património em escassa meia dúzia de anos, quando os rendimentos expectáveis e declarados no fisco traduzem vencimentos muito próximos do meu!?

Mas a questão do ónus da prova é muito difícil de ultrapassar!

Com inversão de ónus da prova ou não, é preciso fazer qualquer coisa. Há-de haver uma fórmula de transposição de outras legislações mais avançadas sobre isto. Nós somos tão bons cultores dessa prática. Ainda agora houve uma revisão do processo penal em que havia normas com expressões em francês... que obrigaram a duas rectificações para expurgar os francesismos. Não diria no Burkina Faso, como disse há dias um senhor deputado, mas podemos ir procurar as leis de países desenvolvidos como nós que permitam atacar claramente a corrupção com resultados mais rápidos e sem que o sistema de justiça se veja enredado nos famosos alçapões. Sobretudo, que evitem que muitos processos, chegados à fase de julgamento, por este ou aquele pormenor, soçobrem.

É a verdade formal versus a verdade material...

Eu lembro-me de um famoso inquérito parlamentar sobre a demissão de responsáveis da Polícia Judiciária, em que se distinguia entre a verdade formal, a verdade material, a verdade processual e a verdade parlamentar. Para que os tribunais não possam ser acusados de dar mais ou menos valia a alguma destas verdades era importante que se clarificassem as regras do jogo.

Concorda com a criação do tão discutido crime de abuso de bem urbanístico?

Tenho vindo a perceber que depois de aturado trabalho nesse tipo de processos se chega à conclusão de que não há ilícito, não há chapéu. Está ali o jeitinho feito, está ali o resultado alcançado, mas não existe instrumento jurídico na nossa lei para o combater.

O comportamento que levanta dúvidas e suspeitas não é criminalizado.

Não é criminalizável à face da lei existente. Tudo o que fosse clarificar essas relações entre a administração e os administrados no imediato talvez não favorecesse os interesses instalados, alguns cultores da vírgula, alguns cultores da licença ou do emolumento, mas certamente permitiria, a prazo, uma maior confiança entre administrados e Administração Pública e Estado.

O que pensa quando olham para si nos meios de Comunicação Social como o juiz que manda nos grandes processos?

Olhe, pelo menos com condescendência, porque tenho a perfeita noção de que a realidade não é essa. Isto de mandar nos processos começa por ser uma expressão equívoca. Eu não mando nos processos, os senhores magistrados do Ministério Público não mandam nos processos, a Polícia Judiciária ou os restantes órgãos de polícia Criminal não mandam nos processos. O Código de Processo Penal fixa em cada fase processual quem é a entidade responsável: o Ministério Público no inquérito; o juiz na instrução; e outro juiz no julgamento. Os processos são um trabalho quotidiano de investigação, de recolha de prova, de actos sequenciais destinados a conseguir obter conclusões e não são propriedade de ninguém. Não são uma quinta de qualquer dos magistrados neles intervenientes. Não os vou buscar e os que me apresentam e eu decido são os que resultam da legislação vigente. Aliás, o actual estado das coisas, nesta III República, o exercício da magistratura ou da actividade policial na vertente investigatória é um exercício arrojado e de grande tenacidade perante os condicionalismos presentes. Por isso, a visibilidade, por definição, é má. Concita um conjunto de atenções, as mais das vezes não benévola... Por isso é que esta entrevista é um acto de excepcionalidade absoluta!'

Coloca-os na mira?

Exactamente, na mira! Na mira dos destinatários, não só para efeitos de um escrutínio normal mas para efeitos de eventual retaliação. Não nos esqueçamos de que o crime tem uma componente cada vez mais económica e o valor dominante na sociedade é o dinheiro. Há uma convicção genérica de que o dinheiro domina as opções e, havendo dinheiro, tudo se consegue.

Acha que há uma ignorância propositada na discussão de certas matérias de justiça que obrigam sempre a investigação criminal a recuar para uma barricada?

Não é bem uma ignorância. Atrever-me-ia a dizer o seguinte: se houver uma pessoa, ou várias pessoas, às quais se possa endossar a responsabilidade pelo mérito ou demérito – normalmente procura-se o demérito.... – por um conjunto de actos investigatórios é mais fácil alcançar soluções à posteriori no sentido de descredibilizar intervenientes e instituições. Veja o que aconteceu ao meu colega Rui Teixeira, hoje juiz de círculo em Torres Vedras. No auge do processo ‘Casa Pia’ chegou a ter patamares de popularidade equivalentes aos do Presidente da República. Passados uns anos, volta a ser trazido à baila mas por outros motivos. Esse juiz foi apontado, num dado momento, como uma referência que transportava uma pesada responsabilidade. Depois, foi alvo de um movimento contrário.

Isso já se discute em Aveiro, no caso ‘Face Oculta’, em tempos muito mais curtos, ou seja, ainda na fase de inquérito.

Repare, o tipo de escrutínio que tem vindo a ser feito, instalando na opinião pública a dúvida sobre o acerto das decisões, foi drasticamente encurtado, o que nos tem de fazer reflectir.

'TENHO GRANDES ESPERANÇAS NA REVISÃO DO PROCESSO PENAL'

Como vê a revisão em curso das leis de Processo Penal?

Deposito grandes esperanças nos resultados do grupo de trabalho que integra alguns dos melhores cultores e operacionais do Processo Penal.

A composição agrada-lhe?

A comissão integra pessoas muito conhecidas e deverá, nesta revisão intercalar, pronunciar-se sobre limites do segredo de justiça e penalizações para quem o viola, sobre prazos de inquérito, prisão preventiva...

O que pensa da prisão preventiva.

Bem, talvez as pessoas não saibam que, ainda que um indivíduo cometa crimes graves e que um magistrado judicial entenda ser necessário prender preventivamente, não o pode fazer se o Ministério Público não requerer. Isso vem da revisão de 2007. Isto deve merecer uma grande atenção.


Por Eduardo Dâmaso, Director-adjunto do Correio da Manhã

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