quarta-feira, abril 04, 2012

Enriquecimento Ilícito - Ac. TC n.º 179/2012

Aqui publicamos o teor integral do douto acórdão do TC sobre o tipo incriminador de enriquecimento ilícito:

ACÓRDÃO N.º 179/2012

Processo n.º 182/12

Plenário

Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. O Presidente da República veio requerer, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do nº 1 do artigo 51.º e n.º 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), ao Tribunal Constitucional, a apreciação da conformidade com a mesma Constituição das seguintes normas constantes do Decreto n.º 37/XII da Assembleia da República:

«(…)

- a norma constante do n.º 1 do artigo 1.º, na parte em que adita o artigo 335.º-A ao Código Penal;

- a norma constante do n.º 2 do artigo 1.º, na parte em que altera o artigo 386.º do Código Penal;

- a norma constante do artigo 2.º, na parte em que adita o artigo 27.º-A à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro;

- a norma constante do artigo 10.º, quando conjugada com as normas anteriormente referidas.

(…)»

2. Para tanto, mostram-se invocados os seguintes fundamentos:

«(…)

1.º

Pelo Decreto n.º 37/XII, a Assembleia da República aprovou o regime que institui o crime de enriquecimento ilícito.

2.º

Este novo tipo criminal é aditado ao Código Penal, na formulação adotada pelo Decreto, sendo aplicável a todas as pessoas, singulares e coletivas (artigo 335.º-A), embora com moldura penal agravada quando praticado por funcionário (artigo 386.º).

3.º

Semelhante tipo criminal é aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que aprovou o regime dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos.

4.º

É a seguinte a formulação dada pelo Decreto ao n.º 1 do artigo 335.º-A do Código Penal: “Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

5.º

De modo semelhante, dispõe o artigo 386.º do Código Penal na redação dada pelo Decreto: “O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

6.º

Finalmente, de acordo com o Decreto, é a seguinte a redação do crime de enriquecimento ilícito aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho: “O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

7.º

Nos termos das normas citadas e, tal como resulta do debate havido no Parlamento que consta dos trabalhos preparatórios, são três os elementos objetivos do tipo legal de crime, comuns à definição do crime em apreciação: i) «adquirir, possuir ou deter património»; ii) «sem origem lícita determinada»; iii) «incompatível com os rendimentos e bens legítimos» do agente.

8.º

Estabelece o artigo 10.º do Decreto que “Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito”.

9.º

Coloca-se, assim, a questão de saber se estas normas conjugadas consubstanciam uma violação do princípio constitucional da presunção de inocência, decorrente do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º e com assento expresso no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição.

10.º

Com efeito, a Constituição garante, no n.º 2 do artigo 32.º, que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Este princípio encontra a sua origem histórica na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, na sequência da Revolução Francesa. Veio a ser inscrito nos mais relevantes textos internacionais de proteção de direitos humanos, designadamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.º 1 do artigo 11.º), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (n.º 2 do artigo 14.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (n.º 2 do artigo 6.º).

11.º

Uma das decorrências deste princípio é, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 32.º da Constituição (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, pág. 518), de resto amplamente citada na jurisprudência do Tribunal Constitucional a este propósito (cfr., entre outros, o acórdão n.º 426/91) a proibição de inversão do ónus da prova.

12.º

Tal proibição traduz-se na necessidade de a acusação fazer prova dos factos que alega, necessários ao preenchimento do tipo legal de crime e dos seus elementos.

13.º

Traduz-se ainda no direito ao silêncio do arguido e a recusar-se colaborar na sua incriminação. Este direito encontra-se previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal, sendo considerado um corolário do princípio da presunção de inocência e das garantias fundamentais do arguido em processo penal (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/95 e Maria Fernanda Palma, A constitucionalidade do artigo 342º do Código de Processo Penal (O direito ao silêncio do arguido), in Revista do Ministério Público, Ano 15º, Out./Dez. 1994, nº 60º, pág. 101 e segs.).

14.º

Sendo certo, como se viu, que o Decreto determina, nos termos gerais do Código de Processo Penal, que compete ao Ministério Público fazer a prova de todos os elementos do crime, importa apurar se a conjugação desta norma com a definição do tipo legal de crime comporta uma inversão do ónus da prova violadora do princípio constitucional da presunção de inocência.

15.º

São três, como acima mencionado, os elementos objetivos do tipo legal de crime. O Ministério Público deve, pois, nos termos do regime descrito, fazer prova da aquisição, posse ou detenção do património, de não ter esse património origem lícita determinada, bem como da sua incompatibilidade com os rendimentos e bens legítimos do arguido.

16.º

Resulta da conjugação dos citados preceitos que, para o preenchimento do tipo legal de crime, basta que o Ministério Público alegue que o enriquecimento não possui origem lícita determinada.

17.º

Sublinhe-se que a exigência de prova não se dirige à ilicitude da origem do património nem, tão-pouco, à licitude dessa origem.

18.º

Tal significa que, na circunstância de o Ministério Público não determinar a licitude da origem do património – por incapacidade de prova, insuficiência de factos, ou outra razão – o tipo legal deve ter-se por preenchido.

19.º

A única forma de o arguido garantir que a prova não se considera produzida é revelar, provando, a origem do património.

20.º

Contudo, uma tal exigência, admitindo que o arguido se encontra em condições de a cumprir, viola, por si só, o princípio da presunção de inocência na sua dimensão de proibição de inversão do ónus da prova e o direito ao silêncio do arguido.

21.º

Com efeito, o tipo legal de crime e os respetivos elementos não podem ser configurados de modo a promover a inércia do Ministério Público, exigindo, em consequência, a ação do arguido.

22.º

A conformação constitucional das garantias penais e processuais penais exige justamente o contrário: a atuação do Ministério Público “à charge et a décharge” e a faculdade, não autoincriminadora, de inação do arguido.

23.º

Poder-se-ia questionar se não deveria a norma ser interpretada no sentido de caber ao Ministério Público a prova da licitude da origem.

24.º

Contudo, tal interpretação não corresponde à letra da lei, uma vez que o elemento do tipo legal de crime definido é “sem origem lícita determinada”. Bastaria, nesse caso, afirmar “sem origem lícita”. Esta configuração do tipo criminal parece afastar a necessidade de prova pelo Ministério Público da licitude.

25º

A referida interpretação conduziria, de resto, ao resultado de forçar o Ministério Público a uma prova da não proveniência de origem lícita – inexistindo, como é evidente, uma enumeração taxativa de origens lícitas de bens.

26.º

Uma tal conceção que assentasse na existência de uma lista de fontes lícitas seria, de resto, contrária ao princípio da legalidade em geral e, em particular, ao princípio da tipicidade da lei penal. Com efeito, de acordo com este princípio, os destinatários da norma devem poder identificar as condutas que o legislador qualifica como ilícitas; não o contrário, aquelas que, por não serem lícitas, passariam, automaticamente, a ser ilícitas.

27.º

O crime de enriquecimento ilícito não encontra, no modo como está definido no Decreto, paralelo nos sistemas penais próximos do Português.

28.º

Com efeito, não obstante ter consagração, tal como referido nos trabalhos preparatórios, na Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, o crime em causa encontra naquela Convenção uma configuração muito distinta.

29.º

Assim, o artigo 20.º da Convenção contém uma recomendação aos Estados partes para que, no respeito pela sua Constituição e direito internos, considerem a possibilidade de adotar medidas legislativas de incriminação de funcionário público por enriquecimento ilícito.

30.º

Deste modo, a Convenção não determina um modelo concreto de crime de enriquecimento ilícito nem, tão-pouco, exige a inversão do ónus da prova – bem ao contrário, remete a definição do crime em concreto para o direito interno dos Estados, no respeito pelas respetivas Constituições.

31.º

Nos sistemas jurídicos que nos são próximos não se encontra lugar paralelo para o modelo que o legislador português agora pretendeu definir. Podemos encontrar na Bélgica, em Espanha e em Itália uma procura crescente de criminalizar a corrupção, mas não o enriquecimento ilícito nos termos previstos no Decreto em apreciação.

32.º

Porventura o modelo que mais se aproxima do que aqui analisamos é o adotado pelo legislador francês. Todavia, de acordo com o disposto no artigo 321.º-6 do “Code Pénal”, a incriminação do enriquecimento ilícito depende da demonstração da existência de conexão entre o agente e outras pessoas condenadas pela prática de crimes graves. Exige-se, ainda, a prova de um benefício direto ou indireto para o agente o que, ao menos, pode ser qualificado como um crime de resultado.

33.º

Deste modo, o modelo de incriminação do enriquecimento ilícito através de uma inversão do ónus da prova seria uma singularidade do modelo português no contexto europeu.

34.º

Não está, assim em causa a criminalização do enriquecimento ilícito – que tem assento nos instrumentos internacionais já citados – mas uma eventual inversão do ónus da prova operada pelo legislador e a consequente violação do princípio da presunção de inocência.

35.º

Este princípio encontra-se também violado na sua dimensão ou sub-princípio “in dubio pro reo”.

36.º

Com efeito, outro corolário do princípio da presunção de inocência é a necessidade de condenação “beyond a reasonable doubt”. Tal significa que, em caso de dúvida, o juiz deve declarar não se encontrarem provados os factos e, neste caso, o “non liquet” favorece o arguido (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 2000, pág. 83).

37.º

Assim, caso o Ministério Público não demonstre a origem lícita do enriquecimento, cria-se a dúvida sobre a licitude ou ilicitude desse enriquecimento.

38.º

Ora, uma vez que a definição do tipo legal de crime se encontra desenhada de tal forma que a não demonstração da licitude da origem dá lugar ao seu preenchimento, a dúvida mencionada conduzirá, inelutavelmente, à condenação do arguido o que consubstancia uma violação ao princípio da presunção de inocência.

39.º

As normas objeto do pedido são, ainda, suscetíveis de violar o princípio constitucional da proporcionalidade, na dimensão necessidade.

40.º

Com efeito, não entrando aqui na controvérsia sobre a qualificação do crime como de perigo, concreto ou abstrato, sempre se dirá, em linha com o afirmado pelo Tribunal no citado acórdão n.º 426/91 que “a constitucionalidade de uma norma que preveja um crime de perigo — e, sobretudo, um crime de perigo abstrato – deve ser julgada, em primeiro lugar, à luz do princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, implicitamente consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Com efeito, em relação às incriminações de perigo (e, especialmente, às de perigo abstrato), sempre se poderá entender que não é indispensável a imposição dos pesados sacrifícios resultantes da aplicação de penas e de medidas de segurança, visto que não está em causa, tipicamente, a efetiva lesão de qualquer bem jurídico”. A imposição de penas e de medidas de segurança implica, evidentemente, uma restrição de direitos fundamentais, como o direito à liberdade e o direito de propriedade, que é indispensável justificar ante o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Assim, uma tal restrição só é admissível se visar proteger outros direitos fundamentais e na medida do estritamente indispensável para esse efeito”.

41.º

A restrição que a criminalização desta conduta importa para os bens jurídicos constitucionalmente protegidos como o direito à liberdade e o direito de propriedade deve justificar-se num teste rigoroso de proporcionalidade. Seria necessário demonstrar que só criminalizando o enriquecimento se conseguiria atingir o resultado visado pelo legislador (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, I, Lisboa, 1997, pág. 75). Ora, como se viu, podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurídicos, salvaguardar princípios constitucionais fundamentais, ademais quando aplicável a todas as pessoas.

42.º

Acresce que, na formulação adotada pelo Decreto, não são claros os bens jurídicos a proteger pela norma e pela respetiva incriminação. Tal indeterminação coloca em crise não só o juízo de proporcionalidade como a própria possibilidade concreta de definição do tipo legal. Com efeito, e o citado acórdão n.º 426/91 é paradigmático disso mesmo, a definição dos crimes não pode nunca surgir desligada dos bens jurídicos que se pretende proteger (cfr., sobre o tema e sobre a necessidade de revisitar a jurisprudência do acórdão n.º 426/91, Jorge de Figueiredo Dias, O “Direito Penal do Bem Jurídico” como princípio jurídico-constitucional, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra, 2009, pág. 39).

43.º

Não menos relevante é a possível violação do princípio da legalidade penal e do seu sub-princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege praevia”.

44.º

Do Decreto não resulta com suficiente precisão o momento da prática do facto, legitimando a interpretação segundo a qual a norma é aplicável a factos ocorridos em momento anterior ao da sua entrada em vigor.

45.º

Com efeito, uma vez que a norma se refere a aquisição, posse ou detenção e sendo a posse um facto aparente e continuado, pode bem suceder que a posse atual se tenha iniciado em momento muito anterior o que implicaria uma aplicação retroativa ou, ao menos, retrospetiva da lei penal o que sempre seria inadmissível à luz do disposto no artigo 29º da Constituição.

46.º

Finalmente, razões de confiança, princípio ínsito ao Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, militam a favor da decisão de inconstitucionalidade do Decreto em causa.

47.º

Foram publicamente expressas, por diversos meios, as dúvidas de juristas sobre a conformidade constitucional do Decreto em apreciação, nas suas sucessivas versões. Tal foi o caso, entre outros, dos Professores Vital Moreira e Costa Andrade. No âmbito do procedimento legislativo tais dúvidas foram também suscitadas nas declarações de voto apresentadas, designadamente na do Partido Socialista e, com especial interesse pela sua clareza de argumentação jurídica, na dos Senhores Deputados Paulo Mota Pinto e Maria Paula Cardoso. Ainda, no mesmo sentido se pronuncia o parecer do Conselho Superior do Ministério Público, nos termos do qual, é aconselhado que “qualquer que venha a ser a formulação aprovada pela Assembleia da República, se faça submeter a lei a fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional”.

48.º

Numa área com a sensibilidade do Direito Penal, onde estão em risco valores máximos da ordem jurídica num Estado de direito como a liberdade, não pode subsistir dúvida sobre a incriminação de condutas.

(…)».

3. No seguimento de tais fundamentos, conclui-se requerendo, “nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do nº 1 do artigo 51.º e nº 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas do n.º 1 do artigo 1.º, do nº 2 e do artigo 10.º constantes do Decreto nº 37/XII da Assembleia da República, por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º e 32.º, n.º 2 da Constituição”.

4. Notificada que foi, a Autora das normas em causa limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.

Nada obstando, cumpre proceder à apreciação solicitada.

II. Fundamentação

5. O objeto da presente fiscalização abstrata preventiva, dependendo do requerimento formulado, consiste na “fiscalização … da constitucionalidade das normas do n.º 1 do artigo 1.º, do nº 2 do artigo 1.º, do artigo 2.º, no que respeita aos aditamentos e alterações aí previstos, e do artigo 10.º, todos constantes do Decreto nº 37/XII da Assembleia da República, por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º e 32.º, n.º 2 da Constituição”, ou seja, importa saber se as normas sindicadas podem ser tidas como desconformes à Constituição, designadamente por violação dos princípios consagrados nas normas constitucionais identificadas.

Tais normas apresentam o seguinte teor:

“(…)

Artigo 1.º

27.ª alteração ao Código Penal

1 - É aditado à secção II do capítulo I do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, o artigo 335.º-A, com a seguinte redação:

“Artigo 335.º-A

Enriquecimento ilícito

1 - Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.

3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada.

4 -Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.

5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”

2 -A secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, passa a denominar-se “Enriquecimento ilícito por funcionário”, sendo composta pelo artigo 386.º, que passa a ter a seguinte redação:

“Artigo 386.º

Enriquecimento ilícito por funcionário

1 - O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.

3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.

4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.

5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.”

3 -A atual secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal passa a ser a secção VII, sendo composta pelo atual artigo 386.º, que passa a ser o artigo 387.º.

(...)

Artigo 2.º

Quinta alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de julho

É aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro, o artigo 27.º-A, com a seguinte redação:

Artigo 27.º-A

Enriquecimento ilícito

1 - O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.

3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.

4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.

5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”

(...)

Artigo 10.º

Prova

Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito.

(…)”.

6. Afigura-se de toda a pertinência, com vista à sua compreensibilidade global, proceder a um curto enquadramento da matéria objeto da presente fiscalização abstrata, quer no âmbito do direito internacional e comparado, quer no domínio do direito interno.

6.1 Ao nível do direito internacional, nos ‘trabalhos preparatórios’, faz-se, essencialmente, referência à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (doravante, “Convenção”), a qual entrou em vigor, na ordem internacional, em 12 de julho de 2003, e viria a ser aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007, de 21 de setembro.

No seu artigo 20.º, cuja epígrafe é, precisamente, “Enriquecimento ilícito”, pode ler-se o seguinte: «Sem prejuízo da Constituição e dos princípios fundamentais do respetivo ordenamento jurídico, cada Estado parte deve adotar as medidas legislativas ou de outro tipo que se revelem necessárias para criminalizar o enriquecimento ilícito, quando praticado intencionalmente, ou seja, o aumento significativo do património de um funcionário público não explicável tendo em conta os rendimentos declarados.”

Ora, constituindo a Convenção um instrumento normativo produtor de efeitos jurídicos vinculativos, os seus preceitos contêm deveres jurídicos para os Estados Partes, concretamente, o dever de criminalização de certas condutas. Sucede que, ao contrário de Portugal, alguns Estados Partes formularam reservas ao artigo 20.º. Foi o caso do Vietname e do Canadá, essencialmente com fundamento no mesmo argumento, a saber, o princípio da presunção de inocência, reconhecido não só nas leis fundamentais destes Estados, como no artigo 14.º, n.º 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Isto não implica, note-se, que os Estados signatários da Convenção que (ainda) não tenham criminalizado o enriquecimento ilícito e que não hajam formulado reservas ao conteúdo da mesma estejam a incumprir as obrigações assumidas. Com efeito, é o próprio artigo 20.º que possibilita aos Estados a não incriminação do enriquecimento ilícito com fundamento na Constituição ou em princípios fundamentais dos respetivos ordenamentos jurídicos. Assim se explicam, por exemplo, as declarações da Finlândia, do Reino-Unido e dos Estados-Unidos da América ao abrigo do “Mechanism for the Review of Implementation of the United Nations Convention against Corruption” (disponível em www.unodc.org).

A Finlândia considera desnecessária a previsão de um tipo legal de crime como o enriquecimento ilícito, pois assevera que os mecanismos legais e regulamentares já existentes são suficientes. Já os Estados-Unidos – e, no mesmo sentido, o Reino Unido - sublinham impressivamente que “a implementação do artigo 20.º, “Enriquecimento ilícito”, implicaria a transferência para o arguido do ónus da prova relativamente ao estabelecimento da natureza legítima da fonte de rendimento em causa. Uma vez que a Constituição dos Estados-Unidos prevê a presunção de inocência do arguido, é impossível criminalizar o enriquecimento ilícito.”

Vale por dizer que uma eventual não criminalização do enriquecimento ilícito por parte do legislador nacional – ou de qualquer outro Estado que não haja formulado reservas ao artigo 20.º da Convenção - não implica inelutavelmente o incumprimento de uma obrigação convencional internacional. Portugal pode invocar princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico-constitucional – inclusivamente princípios que incorporam igualmente normas de ius cogens de direito internacional – desde que isso não o afaste de um necessário combate à conduta visada através de outros meios. Isto mesmo se confirma a partir da leitura do Parecer do Conselho Superior da Magistratura, de 9 de fevereiro de 2011, que apreciou o Projeto de Lei n.º 494/XI/2.ª (PCP):

“[O artigo 20.º da Convenção] não implica necessariamente que haja um crime designado de enriquecimento ilícito, mas sim que a legislação permita punir esse enriquecimento ilícito, o que pode ser efetivado através de outros tipos legais de crime.”

Esta flexibilidade, aliás, está bem patente na página oficial da Convenção, onde se pode ler que “os Estados Partes devem obrigatoriamente tipificar como crime: o suborno a funcionários públicos, a corrupção ativa a oficiais estrangeiros, a fraude e a apropriação indébita, a lavagem de dinheiro e a obstrução da justiça”, e devem “procurar tipificar as condutas de corrupção passiva de oficiais estrangeiros, tráfico de influências, abuso de poder, enriquecimento ilícito, suborno no setor privado e desvios de recursos no setor privado.”

6.2 No espaço da União Europeia, a qual é parte da Convenção, por decisão do Conselho de 25 de Setembro de 2008 (2008/801/CE), existem instrumentos que, não se referindo à incriminação do ‘enriquecimento ilícito’ em si, não podem deixar de se considerar com ele correlacionados (vg., a Convenção relativa à luta contra a Corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-membros da União Europeia, de 1997, que foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 72/2001 e a Decisão-Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada).

6.3 No plano do direito comparado, refira-se que, apesar das dificuldades colocadas à incriminação, alguns Estados admitem o crime de enriquecimento ilícito ou injustificado. É o caso, sem pretensões de exaustividade, de Hong-Kong (v. o Capítulo 201, Secção 10 da Prevention of Bribery Ordinance), do Chile, (v. artigo 241-bis do respetivo Código Penal) da Argentina (v. artigo 268.º, parágrafo 2 do respetivo Código Penal, na redação que lhe conferiu a Lei n.º 25.188, de 1999), de El Salvador (v. artigo 333.º do respetivo Código Penal), do Equador (v. artigo 296.1 do respetivo Código Penal), da China (v. artigo 395.º do respetivo Código Penal), e da Região Administrativa Especial de Macau.

É porventura conveniente atentar na evolução sofrida pelo regime jurídico da figura do enriquecimento ilícito em Macau, pela proximidade relativamente ao ordenamento jurídico português. Ora, o destaque cabe, desde logo, ao artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 14/87/M, de 7 de dezembro (Regime Penal da Corrupção), que previa a punição disciplinar pelo ilícito de “Sinais exteriores de riqueza”.

Seguiu-se a Lei n.º 3/98/M, de 29 de junho, entretanto revogada pela Lei n.º 11/2003, de 28 de junho. Aí se prevê não só o dever de apresentação, por parte de titulares de cargos políticos e demais trabalhadores da função pública, de uma “declaração de rendimentos e interesses patrimoniais” (artigo 1.º), como o crime de “Riqueza injustificada” (artigo 28.º), configurado nos seguintes termos:

“Os obrigados à declaração nos termos do artigo 1.º que, por si ou por interposta pessoa, estejam na posse de património ou rendimentos anormalmente superiores aos indicados nas declarações anteriores prestadas e não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origem lícita, são punidos com pena de prisão até três anos e multa até 360 dias” (n.º 1).

É mister concluir, portanto, que a grande maioria dos Estados não admite a criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado, seja porque o reputam desnecessário no quadro de outros instrumentos de combate à corrupção, seja porque têm dificuldades em sustentá-lo à luz do princípio (fundamental) da presunção de inocência. Exceção a este quadro mais ou menos estável é o crime de “não justificação de rendimentos”, previsto no artigo 321-6 do Código Penal Francês, introduzido pela Loi n.º 2006-64, de 23 de janeiro de 2006:

“Le fait de ne pouvoir justifier de ressources correspondant à son train de vie ou de ne pas pouvoir justifier de l’origine d’un bien détenu, tout étant en relations habituelles avec une ou plusieurs personnes quis soit se livrent à la commission de crimes ou de délits punis d’au moins cinq ans d’emprisonnement et procurant à celles-ci un profit direct ou indirect, soit sont les victimes d’une de ces infractions, est puni d’une peine de trois ans d’emprisonnement et de 75 000 d’amende.”

6.4 O facto de o chamado “enriquecimento ilícito” ter uma expressão praticamente nula no contexto jurídico-penal europeu contrasta, no domínio do direito fiscal, com um conjunto de institutos normativos que pretendem atingir ‘determinados acréscimos patrimoniais não justificados’ que são desvelados a partir da existência de uma desproporção entre o rendimento declarado e certas “manifestações de fortuna”, os quais, assim, se encontram funcionalmente dirigidos “à deteção de situações anómalas onde se verifique uma dissonância entre a capacidade contributiva revelada pelo contribuinte na aquisição de determinados bens e aqueloutra que é possível extrair a partir dos rendimentos por ele declarados” (cf. E. DE MITA, Fisco e Costituzione II, Milão, 1993, pp. 1174 e ss., MARIO TRIMELONI, “Le presunzione tributarie”, in AA. VV. (dir. ANDREA AMATUCCI), Tratatto di diritto tributário, II, Pádua, 1994, p. 235; JOÃO RODRIGUES, Critérios normativos de predeterminação da matéria tributável, Coimbra, 2003, pp. 37 e ss.).

Assim sucede, v.g., em Espanha (cfr. artigo 39.º da Ley del Impuesto sobre la Renta de las Personas Físicas), em França (cfr. artigo 168.º do Code Générale des Impôts) e em Itália, (com o redditometro instituído pelo Decreto del Presidente della Repubblica 29 settembre 1973, n. 600).

6.5 Já, entre nós, podemos encontrar, no mesmo âmbito, não só iniciativas ao nível do direito fiscal como, ainda, no domínio de previsões não fiscais.

No que ao primeiro se refere, temos, desde logo, a avaliação indiciária do rendimento tributável em função do confronto com certas manifestações de fortuna a qual veio a ser introduzida, sob proposta do Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal de 1996, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de setembro, que aditou à Lei Geral Tributária (LGT) a alínea d) do artigo 87.º e o artigo 89.º-A, passando a prever-se o recurso aos métodos indiretos quando “os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificada, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A” (sendo estas: 1) a aquisição de imóveis de valor igual ou superior a € 250.000,00; 2) a aquisição de automóveis ligeiros de passageiros de valor igual ou superior a € 50.000,00 e motociclos de valor igual ou superior a € 10.000,00; 3) a aquisição de barcos de recreio de valor igual ou superior a € 25.000,00; 4) a aquisição de aeronaves de turismo; e, por fim, a realização de suprimentos e empréstimos feitos no ano de valor igual ou superior a € 50.000,00, como resulta da conjugação da alínea d) do artigo 87.º, com o n.º 4, do artigo 89.º-A da LGT).

E, mais tarde, a Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro, aditou ao artigo 87.º da LGT a alínea f), onde atualmente se dispõe haver lugar a avaliação indireta quando se verificar um “acréscimo de património ou despesa efetuada, incluindo liberalidades, de valor superior a € 100.000,00, verificados simultaneamente com a falta de declaração de rendimentos ou com a existência, no mesmo período de tributação, de uma divergência não justificada com os rendimentos declarados”, de modo a abranger outras “manifestações de fortuna” para além das tipificadas no n.º 4 do artigo 89.º-A da LGT (cf., sobre a questão, CASALTA NABAIS, “A Avaliação indireta e manifestações de fortuna na luta contra a evasão fiscal”, em Direito e Cidadania, n.º 20/21, 2004, Cabo Verde).

De notar, por pertinente à análise do problema de (in)constitucionalidade que nos ocupa, dois aspectos que decorrem desse regime legal.

Em primeiro lugar, a tributação decorrente das referidas manifestações de fortuna não é automática, dependendo sempre da ausência, por parte do contribuinte, de razões justificativas para o desvio. Para esse efeito, dispõe-se no artigo 89.º-A, n.º 3, da LGT, que “cabe ao sujeito passivo a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou do acréscimo de património ou da despesa efetuada” (a redação inicial da norma contemplava a seguinte exemplificação: “herança ou doação, rendimentos que não esteja obrigado a declarar, utilização do seu capital ou recurso ao crédito”).

Por outro lado, resulta do n.º 10 do artigo 89.º-A, da LGT, que “a decisão de avaliação da matéria coletável com recurso ao método indireto constante deste artigo, após tornar-se definitiva, deve ser comunicada pelo diretor de finanças ao Ministério Público e, tratando-se de funcionário ou titular de cargo sob tutela de entidade pública, também à tutela destes para efeitos de averiguações no âmbito da respetiva competência”.

Como se compreende, tal preceito leva imanente, ao nível da sua configuração teleológica, que o rendimento desvelado pela existência das manifestações de fortuna resultantes da lei pode resultar da prática de atos penalmente censuráveis, não apenas na esfera dos crimes fiscais, mas também no âmbito de certos crimes contra o Estado, com o que se permite o desencadear de eventuais investigações nesses âmbitos.

Por sua vez, no que se refere às previsões não fiscais, deparamos, entre outros, com o crime de branqueamento de capitais (artigo 368.º-A do Código Penal), perda de vantagens (artigo 111.º do Código Penal) e perda de bens/confisco (artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro - Medidas de Combate à Criminalidade Organizada).

7. Posto este enquadramento, importa abordar as questões de (in)constitucionalidade suscitadas pelo requerimento sob apreciação, não havendo que seguir o iter traçado pelo requerente, mas sem o deixar, naturalmente, de ter no horizonte e, consequentemente, apreciar e decidir as mesmas.

Vejamos.

7.1 À apreciação de tais questões importa, desde logo, uma abordagem da legitimidade jurídico-constitucional da incriminação.

No seu pedido, o requerente invoca que o regime aprovado pela Assembleia da República viola o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, considerando que “podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurídicos, salvaguardar princípios constitucionais fundamentais, ademais quando aplicável a todas as pessoas” e que “na formulação adotada pelo Decreto, tanto mais que não são claros os bens jurídicos a proteger pela norma e pela respetiva incriminação”, sendo sempre que “tal indeterminação coloca em crise não só o juízo de proporcionalidade como a própria possibilidade concreta de definição do tipo legal”.

No que importa ao disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP , enquanto parâmetro para aferir da legitimidade constitucional das incriminações, o Tribunal pronunciou-se, designadamente, no Acórdão n.º 426/91, onde, deixou explícito que “o objetivo precípuo do direito penal é, com efeito, promover a subsistência de bens jurídicos da maior dignidade e, nessa medida, a liberdade da pessoa humana.” Nessa medida, “a imposição de penas e medidas de segurança implica, evidentemente, uma restrição de direitos fundamentais, como o direito à liberdade e o direito de propriedade, que é indispensável justificar ante o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Assim, uma tal restrição só é admissível se visar proteger outros direitos fundamentais e na medida do estritamente indispensável para esse efeito.”, e, igualmente de forma impressiva, no Acórdão n.º 108/99 em que destacou que “o direito penal, enquanto direito de proteção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos – e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentariedade, pois que há de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à proteção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para a proteção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão de constituir sempre o último recurso.”.

Na realidade, como resulta de tal jurisprudência, o artigo 18.º, n.º 2 tem sido convocado como parâmetro para aferir dos pressupostos constitucionalmente legitimadores da intervenção legiferante ao nível da seleção de comportamentos qualificados como crime, impedindo, a esse nível, a tipificação de condutas desligadas da tutela de bens jurídicos, dando-se por assente que um Estado-de-Direito material não pode desvincular-se do princípio jurídico-constitucional do direito penal do bem jurídico, o qual imbrica na ideia de que o direito penal visa a tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal.

Um bem com dignidade jurídico-penal é necessariamente uma concretização dos valores constitucionais. Nas palavras de Figueiredo Dias, “um bem jurídico político-criminalmente tutelável existe ali – e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido”, isto é, um valor fundamental que pré-existe à incriminação e que permite apreciar criticamente o seu sentido (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2007). Neste sentido, “a Constituição surge como o horizonte que há de inspirar e por onde há de pautar-se qualquer programa de política criminal” (v. Acórdão n.º 25/84), isto é, dela resulta uma ordenação axiológica que se afirma como “critério regulativo” da atividade punitiva do Estado (Figueiredo Dias, “Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, 1983, p. 16), assente nesse princípio da exclusiva proteção de bens jurídico-penais operacionalizado a partir do artigo 18.º, n.º 2: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Apreciando a constitucionalidade do crime de tráfico de estupefacientes, este Tribunal assinalou, precisamente, que “o objetivo precípuo do direito penal é, com efeito, promover a subsistência de bens jurídicos da maior dignidade e, nessa medida, a liberdade da pessoa humana.” Esta incindível associação entre o direito penal e os bens jurídicos de eminente dignidade de tutela assume-se, desde logo, como um desdobramento do princípio constitucional da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da CRP (Costa Andrade, “A dignidade penal e a carência de tutela penal”, RPCC, n.º 2, 1992, p. 184).

Assim espartilhado, o instrumentarium penal há de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à proteção das condições existenciais indispensáveis ao viver comunitário” (cf. Acórdão n.º 83/95), sendo que estamos perante um bem jurídico com dignidade de tutela quando a conduta que o lese mereça, pela sua danosidade social, um “juízo qualificado de intolerabilidade social” (Costa Andrade, ob. cit., p. 184).

Daqui decorre que “toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente inconstitucional” (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 126 ).

Ora, esse “património ideológico-constitucional” conta com um fortíssimo lastro na história da jurisprudência constitucional bem desvelado, para além dos arestos já citados, nos Acórdãos n.ºs 25/84, 85/85, 288/98, 617/06 e 75/10 sobre as normas relativas à exclusão da ilicitude em certas situações de interrupção voluntária da gravidez, 347/86, 679/94, 108/99, sobre normas incriminadoras constantes do Código de Justiça Militar, 527/95, sobre o crime de condução sem habilitação, 302/95 e 480/98, sobre o crime de fraude na obtenção de subsídio, 99/2002, sobre o crime de exploração do jogo ilícito, 577/11, sobre o crime de aproveitamento de obra usurpada, 312/2000 e 516/2000, sobre crimes fiscais, 595/08, sobre o crime de detenção de arma proibida, e 128/2012, sobre o crime de injúria.

Nesta ordem de ideias e atento o pedido ‘sub judicio’, cumpre começar por perspetivar, a título prévio, se as normas sindicandas cumprem o desiderato básico de assegurar a tutela de bens jurídicos e se, em caso de resposta positiva, ultrapassam o teste específico da necessidade.

8. Importa, para tanto, proceder à interpretação das normas.

8.1 As normas em causa são as constantes dos artigos 335.º-A e 386.º do Código Penal, aditada e alterada, respetivamente, pelo artigo 1.º, n.º 1 e 2, do mencionado Decreto, e, bem assim, o artigo 27.º-A, aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, pelo artigo 2.º do mesmo Decreto.

Inicialmente, a ‘norma’ punia apenas o ‘funcionário’ e equiparados e pretendia tratar tal crime como de ‘perigo abstrato’, como se depreende da ‘exposição de motivos’ constante do Projeto de Lei n.º 72/XII, que se transcreve na parte pertinente:

“(…)

Neste enquadramento, reafirmando que o combate à corrupção é um combate cívico e de cidadania, que mobiliza a defesa do Estado de Direito Democrático, a primazia da ética na vida pública e política, a sanidade e transparência da vida económica e a luta pela obtenção de altos níveis de desenvolvimento humano e global.

É hoje um dado adquirido que a disparidade manifesta entre os rendimentos de um funcionário e o seu património ou modo de vida, resultante de meios de aquisição não lícitos, representa um foco de grave perigosidade social. Nada mina mais os alicerces do Estado de Direito e do livre desenvolvimento económico do que o enriquecimento ostensivo e injustificado de titulares de cargos políticos ou de quem no exercício de funções, sobre os quais impendem especiais deveres de transparência e responsabilidade social.

Este juízo é tão mais evidente em contexto adverso ao desenvolvimento económico e social, sobretudo considerando que a corrupção consubstancia um fator danoso à promoção do desenvolvimento económico e social.

Deve, por isso, a política legislativa criminal fazer corresponder a este juízo de perigosidade um tipo de crime de perigo abstrato, simultaneamente preservando os princípios conformadores do Estado de Direito Democrático a par da garantia da operacionalidade do instrumento jurídico.

(...)”.

Vejamos, agora, a ‘norma’ aprovada pelo Decreto em causa.

Em função de tal norma temos que qualquer pessoa pode ser agente do crime de ‘enriquecimento ilícito’ (artigo 335.º, n.º 1-A). Diferentemente do que constava da redação original do Projeto de Lei nº 72/XII (1.ª), supra mencionado, o crime deixou de ser específico, no sentido de apenas os funcionários e os titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos poderem ser agentes do mesmo. A qualidade do agente – funcionário, titular de cargo político ou titular de alto cargo público – tem apenas como consequência a agravação da pena aplicável ao crime (artigos 386.º, n.º 1 e 27.º-A, n.º 1).

Pode afirmar-se que o tipo legal de crime de ‘enriquecimento ilícito’ está construído a partir de três modalidades típicas: adquirir património sem origem lícita determinada e incompatível com rendimentos e bens legítimos; possuir património sem origem lícita determinada e incompatível com rendimentos e bens legítimos; ou deter património sem origem lícita determinada e incompatível com rendimentos e bens legítimos.

A descrição dos elementos típicos supõe que o agente adquira, possua ou detenha património, entendendo-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro (artigos 335.º-A, n.ºs 1 e 2, 386.º, n.ºs 1 e 2, e 27.º-A, n.ºs 1 e 2); sem origem lícita determinada (artigos 335.º-A, n.º 1, 386.º, n.º 1, e 27.º-A, n.º 1); incompatível com os seus rendimentos ou bens legítimos, entendendo-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada (artigo 335.º-A, n.ºs 1 e 3) ou, tratando-se de funcionário ou de titular de cargo político ou de alto cargo público, todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos (artigos 386.º, n.ºs 1 e 3, e 27.º-A, n.ºs 1 e 3); e que o valor da incompatibilidade exceda 100 salários mínimos mensais (artigos 335.º-A, n.º 4, 386.º, n.º 4, e 27.º-A, n.º 4).

Desta descrição típica resulta que o conteúdo do ilícito é o mesmo ainda que o agente da prática do crime de enriquecimento ilícito seja funcionário, titular de cargo político ou titular de alto cargo público.

E dela resulta também, numa interpretação que a norma, tal como vem redigida, necessariamente comporta, que o que se pretende punir é a incompatibilidade existente entre o património adquirido, detido ou possuído e os rendimentos e bens legítimos do agente, património esse que, não tendo origem lícita determinada, indicia que o acréscimo patrimonial adveio da prática anterior de crimes.

Isso mesmo se extrai tanto da epígrafe ‘enriquecimento ilícito’, como da parte final do n.º 1 de cada artigo, quando aí se deixa expresso que «… se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal», e, bem assim, dos respetivos ‘trabalhos preparatórios’, onde se pode colher com toda a clareza que a incriminação em causa visa obstar a que os mais diversos crimes fiquem impunes em função das mais diversas vicissitudes, incluindo processuais.

8.2 Ora, se a finalidade é punir, através da nova incriminação, crimes anteriormente praticados e não esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilícito, então não há um bem jurídico claramente definido, o que acarreta necessariamente a inconstitucionalidade da norma. Pune-se para proteger um qualquer bem jurídico indefinido (v.g., a autonomia intencional do Estado, o património, a liberdade sexual, saúde pública …).

Daqui haver-se-á de concluir, em consonância com o já supra referido, que “ … toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente inconstitucional” (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 126).

8.3 Acresce que a construção do tipo não permite a identificação da acção ou omissão que é proibida, com o que fica violada a exigência de determinação típica do artigo 29.º, n.º 1 da Constituição, que é do seguinte teor, na parte relevante: «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, …».

9. Não poderá olvidar-se, ainda, que o tipo legal de crime, tal como se encontra configurado, não passa indemne ao princípio da presunção de inocência.

Na realidade, de acordo com o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

Aí se consagra, como um princípio fundamental do Estado de direito também expressamente formulado no artigo 9.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no artigo 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem –, a “presunção de inocência do arguido”.

Considerando não ser fácil determinar o sentido do princípio da presunção de inocência, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p. 518) apontam, como decorrências do seu conteúdo, as seguintes concretizações: “(a) proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; (b) preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; (c) exclusão da fixação da culpa nos despachos de arquivamento; (d) não incidência de custas sobre o arguido não condenado; (e) proibição da antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares (cfr. AcTC n.º 198/90); (f) proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal; (g) natureza excecional e de última instância das medidas de coação, sobretudo as limitativas ou proibitivas da liberdade; (h) princípio in dubio pro reo, implicando a absolvição em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado”.

Apesar da dificuldade na determinação rigorosa do exato sentido do princípio – também mencionada no Acórdão n.º 270/87 –, deve ter-se por certo que a sua concretização há de levar em conta o ambiente axiológico específico deste terreno dogmático e a particular estrutura de onde o mesmo desponta (como refere Maria Fernanda Palma em “A constitucionalidade do artigo 342.º do Código de Processo Penal – O direito do arguido ao silêncio”, in Revista do Ministério Público, n.º 60, Lisboa, 1995, pp. 102-103).

Assumindo essa pressuposição, Jorge de Figueiredo Dias, após acentuar que o nosso processo penal radica numa “estrutura acusatória integrada pelo princípio da investigação”, concretiza que “à luz do princípio da investigação bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos "à dúvida razoável" do tribunal, também não possam considerar-se como "provados". E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova — não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão — tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo” (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, Polic., Coimbra, 1988-9, p. 145, e quanto à questão de saber se o princípio da presunção de inocência se identifica tout court com o princípio in dubio pro reo, v. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra, 1997, pp. 60 e ss.).

Para o citado Autor, a presunção de inocência assume “reflexos imediatos” sobre o estatuto do arguido, conduzindo, entre o mais, a que “a utilização do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisão de vontade – tanto no inquérito como na instrução ou no julgamento: só no exercício de uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posição perante a matéria que constitui objeto do processo”, o que se desvela, sobretudo, “no direito conferido ao arguido pelo art. 61.º-1 c) [do Código de Processo Penal], de “não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar” (cf. Jorge de Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Aa. Vv., Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1991, pp. 27-28 e Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no atual processo penal português (Alguns problemas e esboço para uma reforma do processo penal português), Lisboa, 2000, pp. 25 a 40; também sobre a liberdade de declaração do arguido, na sua vertente negativa, v. Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra, 1992, pp. 117 e ss., e, especificamente quanto ao direito ao silêncio, Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, O direito à não autoinculpação (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contraordenacional português, Coimbra, 2009).

Ora, esta constelação axiológica que ilumina o estatuto jurídico-processual do arguido em processo penal, com base na qual aquele surge como um autêntico sujeito processual, afasta assim deste horizonte as consequências típicas dos problemas de repartição do ónus da prova decorrentes da afirmação de um princípio da autorresponsabilidade probatória das “partes” construído de acordo com os cânones do processo civil, exigindo que uma decisão condenatória em matéria penal assente na demonstração positiva da culpa do arguido e seja obtida sem sacrifício do tríptico garantístico constituído pela presunção de inocência, pelo ‘in dubio pro reo’ e pelo ‘nemo tenetur se ipsum accusare’ e dos demais direitos que gravitam em torno do arguido.

Daí decorre, pois, um conjunto de exigências de sentido que não se limitam a conformar os diversos atos que compõem as diversas fases do processo penal, que, e de forma decisiva, operam a montante, ao nível da previsão legislativa dos tipos incriminadores, na medida em que impõem ao legislador que “as normas penais não consagrem presunções de culpa e que não façam decorrer a responsabilidade penal de factos apenas presumidos, impondo-se-lhe, em suma, que legisle no sentido de que não saia diminuído, direta ou indiretamente, o princípio da presunção de inocência do arguido” (Rui Patrício, O principio da presunção de inocência..., cit., pp. 37-38).

A formulação do tipo não impede o entendimento de que verificada a incongruência entre o património e o rendimento, ela é qualificada de enriquecimento ilícito sem ser feita a demonstração positiva da ausência de toda e qualquer causa lícita.

Tenha-se presente, aliás, que sendo o elenco de causas lícitas aberto e potencialmente inesgotável, sempre se poderia entender que a exigência de demonstração positiva da sua ausência afectaria quase irremediavelmente a operacionalidade do tipo. Assim lidas as normas incriminadoras, está-se a presumir a origem ilícita da incompatibilidade e a imputar ao agente um crime de enriquecimento ilícito, o que redunda em manifesta violação do princípio da presunção de inocência, determinando, portanto, a inconstitucionalidade das normas em causa.

10. Por último, resta uma sucinta referência à norma constante do “artigo 10.º”, tendo em atenção a questão suscitada pelo requerente.

Ora, o tratamento autónomo de tal questão carece de qualquer razão útil, estando, por isso, manifestamente prejudicado pela solução a que se chegou.

III. Decisão

11. Nestes termos, atento o exposto, o Tribunal decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, e 2.º do Decreto n.º 37/XII da Assembleia da República, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 2, da Constituição.

Lisboa, 4 de abril de 2012.- J. Cunha Barbosa – Maria João Antunes – Gil Galvão – João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Carlos Pamplona de Oliveira – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – (voto a decisão com diferente fundamentação nos termos da declaração de voto anexa) – Vítor Gomes (parcialmente vencido, conforme declaração junta) – Rui Manuel Moura Ramos (Não acompanhando, nos termos da declaração de voto junta, o ponto 8.2. da fundamentação).

DECLARAÇÃO DE VOTO

Manifestei concordância com o juízo de inconstitucionalidade, mas com base em diferente fundamentação, em face das seguintes considerações:

1. O crime de enriquecimento ilícito, tal como configurado nas disposições dos artigos 335º-A e 386º que o Decreto 37/XII da Assembleia da República adita ao Código Penal, bem como do artigo 27º-A aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, contém como elementos típicos a aquisição, posse ou detenção de património, sem origem lícita determinada, incompatível com os rendimentos e bens legítimos do agente, entendendo-se como rendimentos e bens legítimos, para efeito do preenchimento do tipo, todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens que constem das declarações de património e rendimentos ou que tenham uma origem lícita determinada.

O conteúdo ilícito da norma incriminadora consiste na discrepância entre o património e os rendimentos e bens legítimos do agente e, em coerência com esse pressuposto, constitui elemento do tipo legal a ausência de determinação da origem lícita do património.

Tratando-se de uma incriminação autónoma, como resulta com evidência dos trabalhos preparatórios, a ausência de origem lícita determinada, enquanto elemento constitutivo do crime, não se confunde com a demonstração da prática de qualquer facto ilícito que se encontre já tipificado através da caracterização dos delitos de natureza económica ou fiscal (corrupção, peculato, participação económica em negócio, suborno, tráfico de influência, fraude fiscal). O preenchimento do elemento do tipo não exige, por isso, a prova da origem ilícita do património. E nesse sentido aponta o segmento final de cada uma das normas incriminadoras em causa («se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal»), que faz supor que o enriquecimento ilícito é punível apenas quando não poder considerar-se verificada a prática de qualquer outro tipo legal que incrimine a proveniência ilícita de rendimentos ou bens. A criminalização da conduta tem, assim, um carácter subsidiário, visando cobrir situações de acréscimo patrimonial injustificado que, por dificuldades probatórias, não possam ser enquadradas num tipo de crime que implique a própria demonstração da ilicitude da obtenção de património.

Neste contexto, não é possível afirmar que existe uma indeterminação ou sobreposição relativamente ao bem jurídico tutelado, porquanto o que está em causa não é a proteção de bens ou valores que fundamentaram já a criminalização de outras condutas, mas a responsabilização penal de situações objetivas de enriquecimento desproporcionado em relação aos rendimentos lícitos conhecidos ou declarados, independentemente da determinação do facto ilícito pelo qual esses rendimentos chegaram à posse do agente.

E não se vê que falhe aqui a legitimidade jurídico-constitucional da incriminação. O bem jurídico que parece pretender tutelar-se, em qualquer dos tipos legais em causa, é o da transparência das fontes de rendimento, que tem já diversas concretizações no sistema legal, mormente por via da obrigatoriedade da declaração de rendimentos para efeitos de controlo público da riqueza dos titulares de cargos públicos (Lei n.º 4/83, de 2 de abril). E não pode deixar de reconhecer-se que se trata de um bem em si mesmo socialmente relevante, com particular reflexo na prevenção geral da criminalidade económica e fiscal, e que, em última análise, radica nos deveres inerentes à funcionalidade e justiça do sistema social, sabendo-se que entre os valores e bens consagrados na Constituição e os bens jurídicos dignos de tutela penal não tem de existir uma relação de identidade, mas apenas uma relação de analogia material.

2. Pela mesma ordem de considerações não pode aceitar-se que a incriminação do enriquecimento ilícito, tal como está concebida, represente uma forma de punição indireta de factos ilícitos geradores do enriquecimento e consagre, desse modo, uma presunção de ilicitude relativamente a factos que apenas poderiam ser objeto de perseguição criminal por via do preenchimento de outros tipos legais de crime.

Na verdade, a incriminação resulta, não da presunção de que o agente obteve por via ilícita um património desproporcionado em relação aos seus rendimentos legítimos, mas antes da falta de determinação da origem lícita desse património, correspondendo a uma incriminação que sanciona o enriquecimento por causa desconhecida.

Esta explicitação permite também afastar a alegada violação do princípio in dubio pro reo. A falta de origem lícita determinada, enquanto elemento constitutivo do crime, não implica a existência de dúvida acerca da ilicitude ou licitude da proveniência do património, mas pressupõe unicamente que não tenha sido feita prova (na fase de investigação, para efeitos de ser deduzida uma acusação, ou na fase de julgamento, para efeito de ser proferida uma decisão condenatória) de que o património tem uma origem lícita. Nestes termos, o juiz não poderá deixar de fundar a condenação num juízo de certeza sobre a invocada ausência de proveniência lícita, e, por outro lado, o arguido não está impedido de alegar e provar factos indiciários que coloquem a dúvida sobre a falta de licitude dessa proveniência.

Não está excluído, por conseguinte, que o arguido exerça o seu direito de contraprova sobre os elementos de facto que respeitem aos pressupostos do ilícito penal – bastando que alegue que o acréscimo patrimonial passou a integrar a sua esfera jurídica através de meios legítimos, ainda que não mencionados nas declarações apresentadas para efeitos fiscais – e, em caso de dúvida sobre a verificação dos factos, o juiz está vinculado a resolver em sentido favorável ao réu.

3. Formularia, no entanto, um juízo de inconstitucionalidade, por violação dos direitos de defesa, por considerar que o tipo legal, tal como está construído, impõe ao arguido a iniciativa de alegação e prova em relação a factos que integram os elementos constitutivos do crime, violando o direito ao silêncio em termos que representam uma inversão do ónus da prova.

Ainda que o direito ao silêncio por parte do arguido não seja um direito ilimitado e este não possa invocar ter sido prejudicado pelo exercício desse direito quando tenha prescindido de fornecer a sua versão pessoal dos factos ou de prestar esclarecimentos sobre questões que sejam do seu conhecimento (acórdão do STJ de 18 de junho de 2008, Processo n.º 3227/07), o certo é que, no caso, a ausência de origem lícita determinada corresponde a um elemento do tipo formulado negativamente relativamente ao qual a prova a coligir por parte do Ministério Púbico ou, em sede de julgamento, pelo juiz apenas poderá basear-se na discrepância entre o rendimento declarado e o enriquecimento verificado.

Nesse condicionalismo, o arguido não fica dispensado do ónus da prova, visto que se lhe impõe demonstrar, sob pena de ser penalmente responsabilizado, que o património adquirido tem uma origem lícita determinada, ainda que a sua proveniência não se encontre justificada através dos rendimentos revelados pelas declarações fiscais. Não opera aqui o simples exercício do direito de declaração ou o direito ao silêncio, por parte do arguido, em função de uma estratégia de defesa que vise favorecer a sua posição processual. O silêncio terá sempre uma consequência desvantajosa na medida em que não permite contraditar a prova negativa da origem lícita, o que significa que ao arguido cabe o ónus da prova pela positiva, ou seja, cabe-lhe demonstrar que o património adquirido, ainda discrepante com os rendimentos declarados, tem uma origem lícita. Dito ainda de outro modo: deduzida uma acusação por enriquecimento ilícito, e não dispondo o juiz de outros elementos que possam favorecer o arguido, é a este que incumbe suscitar o estado de dúvida e prestar os esclarecimentos que permitam provar a sua inocência.

Ocorre assim a violação do princípio da presunção da inocência do arguido, na vertente da proibição da inversão do ónus da prova.

Carlos Fernandes Cadilha

DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencido quanto à pronúncia pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º do Decreto sujeito a apreciação, na parte em que adita o artigo 27.º-A à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, pelas razões que sumariamente passo a indicar:

1. O Acórdão assenta em duas conclusões fundamentais, abrangendo por igual as três normas incriminadoras sindicadas:

– a impossibilidade de discernir na base da incriminação um bem jurídico com dignidade penal claramente definido (artigo 18.º, n.º 2 , da CRP) e a conduta concretamente proibida (artigo 29.º, n.º 1, da CRP);

– a violação do princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32,º, n.º 2, da CRP), decorrente de a estrutura típica das normas conduzir à presunção da origem ilícita da incompatibilidade entre o património e o rendimento.

Discordo da segunda e não acompanho inteiramente a primeira.

2. Quanto à primeira questão:

O acórdão trata do mesmo modo os três tipos legais de crime que o Decreto sujeito a apreciação pretende introduzir na ordem jurídico-penal. É certo que os elementos objetivos do tipo são, na sua literalidade, com ligeira diferença quanto ao artigo 27.º-A da Lei n.º 34/87, essencialmente idênticos. Mas, a meu ver, uma comum e porventura enganadora designação de “enriquecimento ilícito”, encobre condutas que, em função da qualidade típica do agente, são suscetíveis de lesar diferentes bens jurídicos, havendo que distinguir a incriminação constante do aditando artigo 335.º-A do Código Penal (CP) relativamente às restantes inovações incriminatórias que o Decreto sujeito a apreciação pretende introduzir no ordenamento penal.

Relativamente aquela primeira norma (artigo 335.º-A do CP) acompanho, neste parâmetro, a decisão a que o acórdão chegou, bastando-me, brevitatis causa, as considerações aí tecidas para concluir quanto à ausência de um bem jurídico com dignidade penal ou pela flagrante desnecessidade da incriminação, face aos instrumentos já existentes para sancionar, relativamente a todos os cidadãos, os acréscimos patrimoniais de origem ilícita ou cuja declaração seja omitida para efeitos fiscais.

Já quanto às normas respeitantes ao “enriquecimento ilícito” por funcionário (futuro artigo 386.º do CP) e por titular de cargo político e de alto cargo público (futuro artigo 27.º-A da Lei n.º 34/87), entendo dever colocar-se a questão noutros termos.

Efetivamente, como quer que se designe, existe um bem jurídico com evidente dignidade penal, inerente ao princípio do Estado de direito e com afloramentos expressos noutros lugares da Constituição (p. ex. artigo 266.º da CRP), que é a confiança ou credibilidade do Estado (lato sensu) perante a coletividade e a daí decorrente capacidade de intervenção para a realização das finalidades que lhe estão cometidas (bem jurídico mediato da incriminação), que a ocultação da proveniência do património ou rendimentos dos titulares do poder público ou dos intervenientes na gestão de bens e serviços públicos pode pôr em perigo e que legitima o legislador a impor a transparência da situação patrimonial daqueles a quem incumba funcionalmente preparar, manifestar ou executar a vontade do Estado (bem jurídico imediato da incriminação).

E não é válida a objeção de que relativamente àquele fundamento último a punição é inadequada (i.e., viola a segunda máxima do princípio da proporcionalidade) porque o “enriquecimento ilícito” pressupõe que o “mercadejar com o cargo” já tenha ocorrido. Nem a de que seria desnecessária, por tal conduta ser já objeto de repressão mediante tipos de ilícito penal autónomos. Pondo de lado questões de política criminal, de perfeição jurídica das soluções, ou de estrita dogmática penal, aspetos em função dos quais não cabe ao Tribunal decidir, não vejo que o princípio constitucional da proporcionalidade impeça o legislador de conferir tutela a um mesmo bem jurídico, ou um bem jurídico complexivo, mediante uma armadura penal em que um dos crimes tipificados seja funcionalmente ordenado a reprimir ações ou omissões ilícitas que as tipificações já existentes, na prática e numa avaliação pelo legislador democrático que não se apresente como ostensivamente errada, não se revelem idóneas para deter. O reforço da consciência jurídica da comunidade e do seu sentimento de segurança face à efetiva vigência das normas é finalidade primordial da sanção penal e, portanto, também convocável no momento da legitimação da sua cominação abstrata para as acões ou omissões que se escolham tipificar desde que satisfaçam os requisitos do princípio da legalidade penal. Ora, neste género de atuação ilícita, a conduta do agente tem uma forte componente “racional” ou de cálculo (balanço custo/benefício), sendo a previsão de que as dificuldades de prova da origem ilícita do rendimento não facilitarão o seu aproveitamento factor fortemente desmotivador da violação dos deveres destinados a assegurar a probidade do serviço público.

Deste modo, mesmo que fosse exato – e não acompanho o acórdão nessa interpretação – que a nova tipificação pressupõe necessariamente a origem ilícita do enriquecimento e se destina a funcionar como mero “sucedâneo” de outras incriminações e visa tutelar os mesmos bens jurídicos, não estaria o legislador impedido de consagrá-la.

Mas o que me parece decisivo é que a transparência da situação patrimonial dos titulares ou agentes do poder púbico é, por si mesmo, fortemente incentivadora da confiança dos cidadãos na imparcialidade ou probidade da sua atuação. A confiança dos cidadãos e nas instituições públicas e, sobretudo, na capacidade do Estado de fazer cumprir as suas regras por parte dos que o servem, é um fator crucial da existência e coesão das sociedades democráticas. A transparência da situação patrimonial dos servidores públicos, a revelação da congruência entre a evolução da riqueza no período de exercício do cargo e os rendimentos lícitos conhecidos, constitui um meio de fomento ou um travão à erosão da confiança na imparcialidade no exercício das funções do Estado. Estamos, assim, perante um bem jurídico coletivo, inerente à organização democrática do Estado, e é isso que legitima que aos titulares de cargos políticos e equiparados e a titulares de altos cargos públicos já há muito se imponha a apresentação no Tribunal Constitucional da declaração de património e rendimentos, nos termos da Lei n.º 4/83, de 2 de abril, alterada por último pela Lei 36/2010, de 2 de setembro. A confiança da comunidade no são funcionamento das instituições democráticas é um valor constitucional fundamental e, portanto, um bem jurídico com “dignidade penal”. A atuação funcional dos agentes públicos tem de poder ser vista “como determinada exclusivamente com base em critérios próprios, adequados ao cumprimento das suas funções específicas no quadro da atividade geral do Estado, e na exata medida em que os critérios não sejam substituídos ou distorcidos por interesses alheios à função” (transpondo aqui para todas as funções do Estado lato sensu o que sobre a imparcialidade da Administração disse Vieira de Andrade, “A Imparcialidade da Administração como Princípio Constitucional, Boletim da Faculdade de Direito, Volume L, 1974, Coimbra, pág. 224). Não é, por isso constitucionalmente ilegítimo, que, “partindo da circunstância factual objetiva do enriquecimento desproporcionado ao rendimentos lícitos conhecidos ou declarados, se possa construir uma incriminação que previna e sancione o enriquecimento por causa desconhecida” [Germano Marques da Silva “Sobre a Incriminação do Enriquecimento Ilícito (não justificado ou não declarado) – Breves Considerações nas Perspectivas Dogmática e de Política Criminal” Homenagem de Viseu a Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra editora, pág. 51].

Apesar disto, ainda acompanho o acórdão na conclusão de que a incriminação constante do aditando artigo 386.º do Código Penal, mesmo no grau de evidência em que o controlo de constitucionalidade tem de conter-se neste domínio, viola o princípio da proporcionalidade.

Com efeito, do que se trata nas tipificações agora consideradas não é de punir os factos ilícitos geradores do enriquecimento, factos que serão ou poderão ser sempre puníveis autonomamente quando ilícitos; é a falta de transparência sobre as causas de enriquecimento que é incriminada, embora conjugada ou revelada por uma situação patrimonial desproporcionada aos rendimentos de origem lícita conhecidos ou declarados. Ora, a imposição desse dever a todo e qualquer funcionário, na lata aceção penalmente relevante do termo “funcionário”, mesmo quando não lhe estejam cometidos poderes suscetíveis de condicionar seja a preparação, formação ou tomada de decisão, seja a conformação da execução desta, ou as opções de prestação do serviço público, é flagrantemente desnecessária (por não existir aí o perigo que se visa prevenir) e excessiva, porque a carga ofensiva que comporta para outros direitos fundamentais, como o direito à reserva da vida privada do próprio e de terceiros, não tem a legitimá-la aquela necessidade.

Porém, o mesmo não sucede relativamente aos agentes sobre os quais já hoje impende o dever de declarar em termos extrafiscais o património e rendimentos, e que são aqueles a que corresponde o âmbito subjetivo de aplicação do artigo 27.º-A da Lei n.º 34/87, de 16 de julho. A exigência de transparência sobre as causas do enriquecimento, cujo desrespeito é punido mediante a incriminação do “enriquecimento ilícito” é, aqui, um crime específico de um certo tipo de agentes, a quem a lei legitimamente impõe um dever especial de transparência (cfr. artigo 4.º da Lei n.º 4/83, de 2 de abril, na redação que lhe conferiu a Lei n.º 38/2010, de 2 de setembro). Há um prévio dever de comunicar com verdade que obriga os sujeitos deste crime a declarar os seus bens e a fonte dos rendimentos e que pelas razões já aduzidas se destina a proteger as condições organizatórias indispensáveis ao viver comunitário. É esse dever que a desproporção entre a riqueza ostentada e os rendimentos lícitos conhecidos demonstra não ter sido cumprido e é essa falta de transparência que agora se pretende punir criminalmente deste modo. Elemento objetivo do tipo é a aquisição, posse ou detenção de património sem origem lícita conhecida, o que objetivamente não implica – contrariamente à interpretação que me parece ter prevalecido – que o tipo presume constitutivamente a origem ilícita do património ou dos meios com que foi adquirido.

Ora, como se disse no acórdão n.º 577/2011, “a separação de poderes do Estado impõe ao juiz, mormente ao juiz constitucional, que salvaguarde, com as cautelas necessárias, o espaço de liberdade de conformação que, em matérias de política criminal, pertence primacialmente ao legislador democrático, cuja legitimidade, assente no voto direto popular, lhe confere especial capacidade para decidir quais as condutas passíveis de constituírem ofensas penais, bem como quais as penas adequadas à punição das mesmas. A atividade de fiscalização do Tribunal deve ser, portanto, restringida a um controlo de evidência, relegando-se as decisões de inconstitucionalidade para os casos em que, de modo evidente ou manifesto, se excederam os limites à incriminação penal resultantes do princípio da proporcionalidade e da ideia de Estado de direito democrático”. Razões suficientes para que, quanto a este parâmetro de constitucionalidade e relativamente a esta incriminação, não tenha podido acompanhar o entendimento que prevaleceu.

3. Quanto à segunda questão

Acompanho os termos gerais da análise do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido que o acórdão enuncia e que, já por si, em parte afastam os fundamentos do pedido, designadamente quanto à pretensa inversão do ónus da prova. Mas não concordo com o juízo de violação do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, desde logo porque não compartilho o entendimento de que nos tipos incriminatórios, tal como se encontram construídos, se presume a origem criminalmente ilícita da incompatibilidade patrimonial.

O que está em causa – e atenho-me nas considerações posteriores ao único tipo que considero subsistir face à resposta dada à primeira questão – é a impossibilidade de determinar a origem lícita do enriquecimento do agente no período abrangido pelo dever de declarar, e de declarar com verdade, o património e rendimentos. Ora, como enfatiza a norma do artigo 10.º do Decreto, e já decorre dos princípios gerais do processo penal de estrutura acusatória integrada pelo princípio da investigação, incumbe ao Ministério Público (no sentido de que a dúvida se resolve contra a acusação) a prova também deste elemento do tipo. A lei não presume a ilicitude ou a culpa do agente relativamente ao crime que se lhe imputa. O que existe é uma inferência de facto de ocultação da origem dos rendimentos face às declarações prévias obrigatoriamente apresentadas e à incongruência com a situação patrimonial revelada por qualquer das acções típicas (adquirir, possuir ou deter …. ) que, se for abalada em qualquer dos seus pressupostos, conduz à absolvição do arguido quanto a este crime.

Ora, o Tribunal – tal como o TEDH (v. os casos Radio France v. France, de 2004, Pham Hoang v. France, de 1992, e Salabiaku v. France, de 1988, todos disponíveis em http://www.echr.coe.int/echr/) – tem admitido, como válida a existência de presunções de facto, desde que o arguido possa desmontar o nexo lógico-inferencial em que a presunção se sustenta e baste a contra-prova (e não a prova do contrário) para assegurar uma decisão favorável ao arguido. Lembro a jurisprudência relativa à “fé em juízo” dos autos de notícia (nas suas linhas fundamentais, iniciada ainda no tempo da Comissão Constitucional pelo acórdão n.º 168, de 24 de julho de 1979); os casos em que o Tribunal foi chamado a ponderar o princípio da presunção da inocência do arguido a propósito das normas do Decreto-Lei n.º 85-C/75 (Lei de Imprensa), de 26 de fevereiro, que estabeleciam a responsabilidade criminal do diretor de publicação periódica “se não provar que não conhecia o escrito ou imagem publicados ou que não lhe foi possível impedir a publicação” [cf. alíneas a) e b) do artigo 26.º, n.º 2], sendo que “para efeitos de responsabilidade criminal, o diretor do periódico presume-se autor de todos os escritos não assinados e responderá como autor do crime se não se exonerar da sua responsabilidade pela forma prevista no número anterior” (artigo 26.º, n.º 3) (cfr. p. ex. acórdão n.º 447/87), colhendo-se do seu discurso fundamentador que o parâmetro constitucional assente no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, não se teria por violado posto que e tratava “da presunção de um puro facto, a saber, o do conhecimento do teor daquele escrito ou imagem”, não sendo arbitrária nem se traduzindo “numa manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo”; por último, e sem preocupação de exaustão, lembro ainda o decidido no acórdão n.º 246/96, em que se encontrava questionada a constitucionalidade da norma do artigo 22.º, n.º 2, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Aduaneiras que afastava a punição do crime de contrabando de circulação “fazendo-se prova de que a mercadoria é originária do território aduaneiro ou já se encontra nacionalizada”, em que não se deixou de referir que “como tem sido reiteradamente afirmado pela jurisprudência deste Tribunal, não constitui afrontamento ao princípio da presunção de inocência o facto de a lei estabelecer, em alguns tipos criminais, que a não demonstração da verificação de certos factos possa atuar em desfavor do arguido”.

Finalmente, não pode considerar-se que a estrutura do tipo colida necessariamente com o conteúdo de sentido do princípio nemo tenetur se ipsum accusare. Nenhuma contribuição se exige ao arguido para a prova dos factos constitutivos do tipo e nenhuma conclusão desfavorável ao arguido se retira do seu exercício do direito ao silêncio. Prestar ou não declarações ou apresentar prova quanto à origem lícita do enriquecimento é opção que o arguido tomará livremente consoante a estratégia de defesa que escolha.- Vítor Gomes.

DECLARAÇÃO DE VOTO

Contrariamente ao que o acórdão afirma no seu ponto 8.2., não faço decorrer a inconstitucionalidade da norma sindicada diretamente da invocada inexistência de um bem jurídico claramente definido. Com efeito, respondo afirmativamente à questão de saber se as normas sindicadas asseguram a tutela de bens jurídicos, acrescentando a este respeito que os bens jurídicos que justificam a presente incriminação serão os mesmos que suportam outras incriminações plasmadas no sistema jurídico. Estaremos assim perante um bem jurídico compósito, cuja legitimidade jurídico-constitucional está assegurada pelos fundamentos que asseguram a legitimidade das normas incriminadoras cuja direta violação conduziu ao enriquecimento que se pretende sancionar. Tal asserção, sendo em si mesma demonstrativa da observância do património valorativo com assento constitucional, não é afetada pela circunstância de o bem que assim se pretende tutelar surgir aqui numa conceção que resulta da concentração dos bens que justificam as referidas incriminações. O que não implica que esta construção não possa ter repercussões na formulação do tipo, ao impedir a sua necessária concretude, frustrando assim, como se afirma no ponto 8.3., a possibilidade de tornar apreensível o mandamento jurídico-penal inscrito na norma.- Rui Manuel Moura Ramos.


Fonte: Tribunal Constitucional

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