sábado, abril 23, 2011

Entrevista de Rui do Carmo Fernando - Vida Judiciária - Março 2011

Rui do Carmo Fernando, director-adjunto demissionário do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), em entrevista.

Foi empossado pelo ministro da Justiça, Alberto Martins, como director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) a 25 de Março de 2010, mas nem um ano se manteve em funções, demitindo-se a 24 de Janeiro último.

Em entrevista à “Vida Judiciária”, a primeira que concede desde que se demitiu do cargo, Rui do Carmo Fernando afirma que todos se devem “orgulhar pelo trabalho que, ao longo dos seus mais de 30 anos, o Centro de Estudos Judiciários tem desenvolvido” e nega que tenha havido “qualquer razão de ordem pessoal” a determinar o seu pedido de afastamento de funções.
Contundente, o magistrado diz que, além da “falta de meios”, o CEJ “fragiliza-se com a indefinição sobre o seu futuro, fragiliza-se como centro de formação e de investigação com uma liderança fraca, que não partilha informação, não promove o debate e a participação e não estimula a iniciativa”.É, pois, preciso “dar voz aos utilizadores da Justiça”. Para Rui do Carmo, o sistema “tem de os incluir e de dar especial relevo à sua participação na elaboração do diagnóstico e na construção das respostas”.

Vida Judiciária - Que motivações o levaram a aceitar a comissão de serviço para exercer as funções de Director-Adjunto do Centro de Estudos Judiciários que agora cessa?
Rui do Carmo Fernando - Aceitei porque conhecia o Centro de Estudos Judiciários, onde tinha sido docente e director-adjunto com responsabilidades na formação dos magistrados do Ministério Público, e tinha desenvolvido, à luz dessa experiência, alguma reflexão sobre o tema, pelo que entendi que podia dar um contributo positivo.

VJ - E o que é que mudou desde então, tendo em conta que essa comissão de serviço apenas terminava em Março de 2013 e que o senhor apresentou, no final de Janeiro, a sua demissão do CEJ?
RCF - Tomei a decisão de deixar de exercer funções como Director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários devido, por um lado, à crescente indefinição e falta de informação sobre as perspectivas políticas para a formação de magistrados e para o CEJ e, por outro lado, ao défice interno, ao nível do funcionamento da estrutura de direcção, de partilha de informação, de trabalho colectivo, de debate e de participação nas decisões.

VJ - Quais foram as razões por que apresentou a sua demissão? O Ministro da Justiça, Alberto Martins, disse que o senhor tinha apresentado “motivos pessoais” para a demissão, mas o jornal “Público” chegou a citar declarações suas dizendo que tal demissão se deveu à “política de austeridade do Governo”. Confirma? Ou houve outras razões?
RCF - As razões foram as que acabei de referir, que expliquei concretamente, no dia 24 de Janeiro, ao Senhor Ministro da Justiça. Não houve qualquer razão de ordem pessoal que tivesse determinado a minha decisão.

VJ - Alguns deputados da Oposição parlamentar, designadamente do PCP e do CDS-PP, dizem que há “colapso de meios”, por um lado, e ausência de cursos complementares de formação de magistrados para colmatar o défice daqueles que se jubilaram. Revê-se nestas críticas feitas ao CEJ?
RCF - Há escassez de meios, claro que sim. Mas sempre conheci o CEJ com insuficiência de meios, mesmo em épocas em que a situação económica do país era melhor. O que é preocupante é o demasiado prolongado silêncio sobre a existência, ou não, este ano, de concurso para recrutamento e selecção de novos magistrados. Fala-se da necessidade de aproveitar melhor os meios humanos existentes e mesmo da sua eventual suficiência, fala-se da necessidade de esperar pelos resultados da avaliação sobre o actual modelo de formação contratada com o Observatório Permanente da Justiça. Simultaneamente, é anunciada a apresentação de uma, cito, “proposta de lei de regime extraordinário de completamento da formação e colocação dos magistrados em formação no Centro de Estudos Judiciários” e há diligências para que o CEJ dê formação aos licenciados em direito que exercem as funções de substituto de procurador.Recentemente, o Senhor Ministro da Justiça afirmou que o CEJ deve acentuar a sua vocação para a formação permanente e deve “aumentar a intervenção de outras entidades, designadamente universidades, na formação inicial dos magistrados”. Em que ficamos afinal? É uma tarefa muito difícil tentar encontrar uma linha de orientação no meio de tudo isto. Há um dever de esclarecimento que se impõe.

VJ - Por que se remeteu ao silêncio até agora? Os próprios juízes e demais interessados nas questões da Justiça já disseram publicamente que querem que se pronuncie para se saber das suas verdadeiras motivações para a demissão. Porque não o fez até aqui?
RCF - Não prestei declarações enquanto me mantive no exercício de funções porque entendi não o dever fazer. Continuei a assegurar o pleno cumprimento dos programas de formação inicial e contínua até ao dia em que cessei funções e apresentei à Senhora Directora o respectivo relatório de execução. A partir dessa data, fiquei disponível para responder às perguntas que me fizeram e para participar no debate público sobre a formação de magistrados e o Centro de Estudos Judiciários.

VJ - Entretanto, pouco mais de um mês após o seu pedido de demissão, o Director-Geral do CEJ, Fernando Ventura, apresentou também a sua demissão. Não acha estranha esta coincidência de datas?
RCF - Desconheço as razões concretas da demissão do Senhor Juiz Desembargador Fernando Ventura.

VJ - Conversaram sobre a situação no CEJ e sobre as razões que acabariam por levar aos pedidos de demissão de ambos, ainda que em datas diferentes?
RCF - Não falei com ele. O que conheço é apenas através da imprensa.

VJ - O ministro da Justiça tem desdramatizado a situação destas demissões e afirma que o CEJ “não está moribundo”, mas que está com “pujança a formar magistrados”. Concorda com esta visão?
RCF - Entendo que o CEJ se encontra fragilizado. Fragiliza-se com a indefinição sobre o seu futuro, fragiliza-se como centro de formação e de investigação com uma liderança fraca, que não partilha informação, não promove o debate e a participação e não estimula a iniciativa. E que se resigna a não ter voz sobre o futuro da instituição e da formação dos magistrados em Portugal.

VJ - Acha que, em Portugal, se estão a formar os melhores juízes?
RCF - Acho que nos devemos orgulhar pelo trabalho que, ao longo dos seus mais de 30 anos, o Centro de Estudos Judiciários tem desenvolvido. O caminho deve ser sempre o de querer melhorar e não de regredir.
VJ - E que opinião tem sobre a qualidade da Justiça e das decisões judiciais no nosso país?
RCF - Parece haver um certo consenso em que o problema essencial da nossa justiça não é um problema de qualidade mas um problema de morosidade.

VJ - Apesar das afirmações de que o CEJ “não está moribundo” e que está com “pujança a formar magistrados”, o mesmo ministro, Alberto Martins, diz que o modelo de formação de magistrados pelo CEJ deve ser questionado e discutido. Tem sentido abertura da parte da Tutela para esta discussão e para alterações ao modelo de formação?
RCF - O debate sobre o recrutamento e a selecção dos juízes e procuradores tem de saltar dos muros do espaço judiciário. Tem de dar voz aos utilizadores do sistema de justiça, tem de os incluir e de dar especial relevo à sua participação na elaboração do diagnóstico e na construção das respostas. É essencial que se dê esse passo.

VJ - Até Setembro deste ano será apresentada uma nova proposta sobre formação de magistrados, assegurou o ministro da Justiça. Que alterações ao modelo de formação de juízes o senhor defende?
RCF - Entendo que a reflexão deverá incidir fundamentalmente sobre os métodos de selecção dos candidatos à magistratura, sobre a organização da formação inicial e a articulação entre as suas fases, sobre as condições do planeamento e execução da formação contínua e sobre a governação do Centro de Estudos Judiciários. E pretendo deixar uma breve nota apenas sobre cada um destes temas.Quanto ao primeiro ponto, sublinho a necessidade de uma clarificação dos requisitos de admissão e um repensar dos instrumentos adequados à selecção dos candidatos a ingresso no CEJ pela “via profissional”, para que esta cumpra cabalmente o seu objectivo de contribuir para o enriquecimento do tecido sócio-profissional das magistraturas, através de uma maior diversidade de idades, trajectos e experiências profissionais dos seus membros.A fase teórico-prática da formação inicial deve acentuar a sua vertente interdisciplinar e de tratamento do facto, cosendo os seus dois ciclos com a linha de um objectivo comum e a clara definição do contributo que se pede a cada um deles para o alcançar.A formação contínua e especializada tem sido, do ponto de vista do que nela é investido, o parente pobre do CEJ. Situação que terá de ser urgentemente modificada.O modelo de governação do Centro de Estudos Judiciários deve garantir uma ampla legitimação da definição do seu programa de trabalho, o efectivo acompanhamento da sua execução pelos órgãos da instituição e um funcionamento corrente colegial, democraticamente participado, motivador e criativo. O CEJ não é, nem deve funcionar como se fosse, uma direcção-geral do Ministério da Justiça.

VJ - O estágio dos magistrados é, actualmente, de dois anos e meio, creio, tanto para os futuros juízes como para os futuros magistrados do Ministério Público e há quem defenda que esse estágio deveria ser alargado, dando-lhes mais tempo de preparação. Partilha desta opinião?
RCF - Dar-me-ia por satisfeito se o tempo de formação que hoje está previsto fosse sempre integralmente cumprido.

VJ - O tempo de preparação deve ser o mesmo para os magistrados do Ministério Público ou para estas funções exige-se um tempo de preparação diferente?
RCF - Entendo que não deve haver qualquer diferença quanto ao tempo de formação.

VJ - E quanto aos juízes formadores? Como é feita a sua selecção para o CEJ? É por convite, como acontecia até aqui na Ordem dos Advogados, ou é por concurso?
RCF - Os docentes do CEJ são nomeados pelo Ministro da Justiça, sob proposta do director do CEJ, ouvido o Conselho Pedagógico. Têm sido apenas juízes e procuradores, mas não o têm de ser exclusivamente. Os formadores, por sua vez, são escolhidos pelo director, e no 1º ciclo da formação teórico-prática incluem especialistas de diversas disciplinas e áreas profissionais.

VJ - Há quem acuse esses juízes formadores de apresentarem como objecto de trabalho nas aulas as suas próprias decisões judiciais, o que influenciará a visão dos formandos. O que diz a isto?
RCF - Trabalhei intensamente durante o último ano com os docentes do CEJ, juízes e procuradores, e foi uma experiência muito gratificante. São magistrados competentes e empenhados no trabalho que estão a fazer. Iniciámos uma ampla e profunda reflexão conjunta quando da preparação do plano de actividades para 2010/2011, que acompanhou posteriormente a execução do plano de estudos do 1º ciclo da formação inicial e do programa de formação continua. Os seus resultados são visíveis nas significativas alterações introduzidas no plano de estudos do 1º ciclo, no reforço do plano de formação contínua e na capacidade que tem havido de os cumprir. Agradeço-lhes a colaboração que me prestaram.É importante que os magistrados docentes do CEJ tenham experiência, uma boa preparação técnico-jurídica, que sejam cultos e valorizem a interdisciplinaridade. Não vejo qual é o problema em partilharem com os auditores de justiça situações extraídas da sua experiência enquanto juízes e procuradores.Pelo contrário. Eu próprio o fiz durante os quatro anos em que fui docente, de 1997 a 2001, e sempre procurei estimular nos auditores de justiça o sentido crítico e o exercício do direito de discordar.

VJ - Também se acusa o CEJ de uma formação demasiadamente teórica. Partilha dessa crítica?
RCF - Essa “acusação” surge dirigida ao primeiro ciclo da formação teórico-prática dos auditores de justiça. Aproveito para esclarecer a que me quis referir quando falei da necessidade de coser os dois ciclos da formação teórico-prática – um que decorre no Centro de Estudos Judiciários e o outro que decorre nos tribunais - com a linha de um objectivo comum e a clara definição do contributo de cada um deles. Conheço bem ambos, pois fui, de 2001 a 2004, o director responsável pelo segundo ciclo de formação dos futuros magistrados do Ministério Público.O ciclo por excelência para aprender a “saber fazer” é o segundo ciclo, o que decorre nos tribunais. Quanto ao primeiro ciclo, distingo quatro grandes objectivos que, a meu ver, deve procurar alcançar: compreensão da inserção constitucional dos tribunais na organização do poder político e das suas funções; interiorização das regras estatutárias, éticas e deontológicas que terão de reger o exercício da magistratura; aquisição de conhecimentos que não resultam da formação de base dos auditores de justiça e que se mostram essenciais ao exercício da função para que se estão a preparar; aprendizagem do método judiciário de apreensão, compreensão e tratamento do facto.São duas fases de formação complementares, que terão de ser concebidas e executadas de forma articulada, mas a verdade é que a ligação entre elas nunca foi objecto de intervenção suficientemente clarificadora, o que em certa medida as autonomizou e potenciou a construção de uma praxis que, por vezes, se assemelha à da coexistência de dois modelos de formação rivais. É neste contexto que deve ser entendida tal “acusação” feita por alguns ao primeiro ciclo da formação inicial.Defendo, contudo, há já alguns anos – e escrevi-o em 2001 –, que o núcleo essencial das actividades a desenvolver no primeiro ciclo de formação não deverá ser organizado por “disciplinas”, mas deverá consistir na abordagem de temas seleccionados pela sua relevância sócio-judiciária, de forma multifacetada e interdisciplinar, que inclua a vertente jurídica, o tratamento do facto, a sua compreensão, os contributos de outras disciplinas imprescindíveis ao seu conhecimento e abordagem (como sejam a contabilidade, a psicologia, a sociologia, a medicina legal …), a análise das expectativas e dos efeitos da intervenção judiciária. O Plano de Actividades de 2010/2011 iniciou esse caminho, ao ter previsto no programa de actividades do XXIX Curso de Formação de Magistrados para os Tribunais Judiciais o tratamento transversal, para já, de quatro temas, num modelo que se designou por “Módulos Temáticos” - acidentes de viação, abusos sexuais e exploração sexual de menores, insolvência e violência doméstica.É importante sublinhar que a formação não é, não pode ser, uma reprodução acrítica de rotinas. O seu objectivo deve ser o de formar magistrados capazes de assumir o seu estatuto de independência ou de autonomia, com uma boa compreensão do seu estatuto constitucional e profissional, preparados para apreender e compreender o facto e responder de forma esclarecida e pragmática aos desafios da actual complexidade social, conscientes da sua função e comprometidos com as consequências das decisões e a sua efectiva execução.

VJ - Tendo estas críticas fundamento ou não, o certo é que a formação dos magistrados tem estado debaixo de forte contestação e polémica, sendo que o próprio ministro da Justiça revelou, a meados de Fevereiro, em declarações à comunicação social, que pediu ao Observatório Permanente da Justiça e ao CEJ um estudo sobre a formação de magistrados em Portugal. Acha bem?
RCF - Todos os estudos, monitorização da formação, reflexão e debate são bons. Não podemos é andar a promover ciclicamente revoluções copernicianas nesta área, nunca deixando estabilizar, amadurecer e testar suficientemente um modelo de formação.

VJ - Que expectativas tem em relação a esse estudo?
RCF - Tenho a expectativa de que seja um estudo rigoroso. É o que todos esperamos.

VJ - Está confiante numa evolução positiva da actividade do CEJ e numa valorização do seu papel na formação dos magistrados em Portugal?

RCF - Neste momento, tenho algumas preocupações quanto ao futuro. Os sinais são contraditórios e, fundamentalmente, há falta de informação e a que existe é pouco clara.

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Fonte: SMMP

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