domingo, outubro 30, 2005

Comunicado sobre a Fome - CDHOA

Pela relevância intelectual do seu conteúdo, tomamos a liberdade de publicar na íntegra o "Comunicado sobre a Fome" apresentado pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados:

"Quem nada tem, nada come.
E ao pé de quem tem comer
Se alguém disser que tem fome
Comete um crime sem querer.

Elegemos, para encabeçar o Comunicado, esta quadra rimada de António Aleixo, composta há sessenta anos, não com a estulta ideia de conferir lirismo à fome, mas por duas razões assaz prosaicas:

A primeira por que a realidade subjacente, conquanto se haja cambiado acerca da qualificação criminosa que o regime político, de então, fazia do desesperado grito do faminto, nada mudou no tocante à actual persistência da chaga social potenciada, na altura, pelos racionamentos de guerra;

A segunda, pelo motivo de (para além da desmedida diferença de talento expositivo) a falar de fome, o António Aleixo, que a sofria, ser muito mais expressivo do que nós, que a não sofremos.

São apavorantes os recenseamentos feitos pelas entidades que, nos centros urbanos, forcejam na inglória tarefa de debelar o drama de quem nada tem, nada come:
• Quatro milhões de refeições/ano, fornecidas pela Misericórdia de Lisboa,
• Novecentas e vinte instituições de solidariedade a distribuir alimentos, numa rede que está muito apartada de cobrir todo o país;
• Dois mil indivíduos “sem abrigo”, a subsistir da caridade social, em Lisboa;
• Trinta e três mil idosos a habitarem sós e sem recursos próprios, em tugúrios da capital;
• Sessenta e duas mil toneladas de alimentos recolhidas e distribuídas pela Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, no ano transacto;

E o que mais punge é a circunstância de estes números, embora aterradores, serem, de todo, inexpressivos. A miséria desvalida, aquela que, por vergonha, desconhecimento, ou impossibilidade, não vai, de longada, à sopa do Sidónio, ou, de criança a tiracolo, à pedincha nos semáforos, sendo a menos ostensiva, é aquela que mais dramaticamente sofre os horrores da fome.

A este respeito, a estatística oficial é muito mais incisiva:No informe recente do I.N.E, dois milhões de portugueses (representando a quinta parte da população do país) subsiste com ganância inferior à definida, pelo Eurostat, como sendo a do limiar abaixo do qual as necessidades básicas deixam de ter plena cobertura — 283 euros por mês.

Outra senha reveladora da progressão da miséria é o elevado aumento de famílias a usufruir do “Rendimento Social de Inserção”, o qual, pelos factos da sua exiguidade (em média, 53 euros/mês, por cabeça) e da ausência final de qualquer “inserção social”, a chamar as coisas pelo nome, melhor lhe quadraria o de “esmola social”.

Cerca de trezentas e trinta mil pessoas (3,3% da população) partilham deste óbolo.Menos mal que uma significativa parte dos beneficiários (de raça cigana, mas não só) gozam de rendimentos “invisíveis”, que já antes da atribuição da “esmola” lhes permitiam sobreviver, pois, a não ser assim, a taxa de mortalidade, em Portugal, seria muito mais avantajada.

De qualquer forma, como não se pode partir da existência de rendimentos “invisíveis” na pessoa a quem se atribui o subsídio (nem eles existirão na maioria dos casos) constitui um vergonhoso fingimento pressupor que alguém possa sobreviver com uma ração mensal de cinquenta e três euros.

O derradeiro indício da existência de miséria, que arrolamos, é o que advém do aumento da taxa de desemprego.A quantidade de desempregados ultrapassava, no fim do terceiro trimestre do ano passado, o número de quatrocentos e setenta mil, tendo aumentado, em relação ao período homólogo de 2002, 23,8%.

Também neste ponto a informação enferma do pecadilho do carácter abstracto da ciência estatística. Alguns dos sem-emprego são-no porque não gostam de trabalhar; outros, praticando tarefas da “economia paralela”, integram a categoria de desempregados fictícios.

Mas, deste extracto residual, ainda sobejam muitos que constituem os autênticos desempregados. E deve atentar-se no facto de o aumento da taxa de desemprego reflectir, sobretudo, o aumento destes últimos, visto que a quantidade dos madraços é estável, quer haja pleno emprego, quer não.

Trata-se, na circunstância, da classe média-baixa que, em muitos casos, criou encargos fixos com a compra de habitação, ou a educação dos filhos, contando com o recebimento de salários dos elementos activos da família e que, num fenape, se vê privada dos próprios meios de subsistência.

Uma referência, conquanto ligeira, deve ser feita aos portadores da desventura, que vem de Leste.Portugal, que sempre foi um país de emigração, tem obrigação moral de não escorraçar os imigrantes que o demandam… Lembra-te, Israel, que também foste estrangeiro em terras do Egipto!, recorda, ad aeterno, o Livro Sagrado.

Ao imperativo moral, acresce a circunstância de a admissão de imigrantes constituir um benefício para o país que os recebe, “feitos”, e uma desgraça para a terra que os vê abalar, depois de “os fazer”.

Sem embargo deste interesseiro dever de acolhimento, pululam, em Portugal, os imigrantes ilegais, não legalizáveis.

O estado de clandestinidade destes estrangeiros (que, além de dois braços para trabalhar, trazem uma boca para comer) implica o total cerceamento dos direitos humanos que a sua qualidade de pessoas pressupõe.

Desde logo, o direito ao trabalho e, como consequência, o direito ao pão; Depois, o direito à protecção civil, que passa pela possibilidade de impetrar auxílio policial, ou judicial, de que eles estão impedidos, sob pena de expulsão, Finalmente, o direito à assistência social, porquanto, ainda quando trabalhem, não podem beneficiar da inscrição nos respectivos Centros.

A este respeito, cabe denunciar o revoltante comportamento de alguns patrões que, cientes do desamparo jurídico dos seus trabalhadores clandestinos, adiantam fortuna mal lograda à custa da sonegação do pagamento dos respectivos salários, acrescentando miséria à miséria.

A fome (de alguns) é fatalidade endémica que, como a divindade de Deus, não teve princípio, nem terá fim. Pobres sempre os tereis convosco, profetizou Jesus em resposta aos discípulos que censuravam a carestia da sua unção com essência de nardo.

Sem embargo da infalibilidade de Jesus, alguns nobilitantes empreendimentos para desdourar a profecia vêm sendo feitos, ao longo das idades:

Um, foi a de exterminar os pobres, como, inteligentemente, fazia a Santa Inquisição quando deixava de alimentar os encarcerados por os cabedais a eles apreendidos não darem suporte às suas despesas de alimentação — morre o cão, acaba a raiva;

Outro, consistiu em declarar extinta a miséria. Foi a perspicaz proeza do Oliveira Salazar ao determinar o fim da pobreza através de um decreto — antes de extinguir a guerra, em Angola, através de um discurso;

Finalmente, uma terceira forma de extirpar a fome é armazenar os famintos em asilos, pondo-os, aí, a pão e água. Esta é a opção seguida, cristãmente, por alguns compassivos governos (poucos, por via do alto preço do pão e da água), na esteira do usurário setecentista Juan de Robres que, ao construir um albergue para desvalidos, recebeu, com justeza, de Juan de Iriarte o seguinte epigrama:

El señor don Juan de Robres,
Con caridad sin igual,
Hizo este santo hospital
Y también hizo los pobres.

É certo que inteligências iluminadas como as dos Inquisidores, de Salazar, ou de Juan de Robres não emparelham em todos os dias — nem em todos os séculos.

Mas, numa sociedade em que uns morrem de fome e outros de enfartamento, o estabelecimento do equilíbrio não demandará geniais mentalidades.

Uma tal sociedade nem carece de posses acrescidas para debelar a calamidade dos extremos. Carece de lucidez.

A existência de bairros de lata nas metrópoles, constitui um exemplo acabado da política errada que se vem seguindo. Por um lado, acena-se com o engodo de vida mais fácil na cidade, em vista da (falsa) aquisição de melhores empregos e menores canseiras; Por outra banda, impede-se a construção de habitações nos campos, com Planos Regionais e outros que tais. A consequência é o desenraizamento de populações campaniças com o seu consequente afluxo às cidades, onde têm de abandonar os padrões e meios de vida tradicionais, a troco de nada — ou, o que pior é, a troco de vícios envilecedores que a cidade lhes facilita.

Com esta permuta, deixam de ser o elemento socialmente útil, que eram, para virarem em sobrepeso da comunidade de que passam a depender.

Um homem com fome é sempre um homem revoltado. E, o mais dramático,… legitimamente revoltado.

Tal revolta potencia-se se, à sua fome, acrescer a de seus filhos a quem ele não possa satisfazer o lancinante pedido da bagatela de uma vital côdea de pão para a boca.

Ora, como o mundo de cada um não acaba nas paredes da sua casa, decorre daqui que a paz social só poderá ser atingida quando, não havendo fome, não haja homens legitimamente revoltados.
Donde a conclusão de a imperiosa mobilização nacional no rumo da debelação da miséria (para além de comportar um sentido altruísta) ter parte, também, com o interesse individual (e egoísta) de cada um de nós.

E com esta tirada de canhestra ciência filosófica, se põe ponto ao Comunicado sobre a fome produzido pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.

Que não foi feito só para pensarmos.
Mas sobretudo para agirmos.

Valério Bexiga - CDHOA"

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