sábado, fevereiro 09, 2008

O bastonário contra o sistema

Por João Almeida Santos
Filósofo
in
Diário Económico

"Marinho Pinto tem todas as condições para se transformar num eficaz líder político: o seu discurso é torrencial, emotivo e negativo.

Se perguntasse aos leitores a quem se refere o título deste artigo, tenho a certeza de que a maioria responderia: ao bastonário da Ordem dos Advogados (BOA).

Por isso, o caso Marinho Pinto merece algumas reflexões.

1. Quem assistiu à recente entrevista de Judite de Sousa ao BOA pôde constatar que, a cada pedido de concretização das suas denúncias, ele dizia que já tinham sido publicadas nos media. Criticava o sistema com base em denúncias mediáticas, identificando “verdade factual” com “narrativa jornalística”. O BOA assumia, assim, um conceito de verdade mais subsidiário dos media do que do real, fazendo “jus” às suas origens profissionais. Um teórico da comunicação diria: ora aqui temos o verdadeiro “jornalismo ‘advocacy’”!

2. A crítica do sistema não é a principal função de uma ordem profissional. Com efeito, as ordens são associações que se ocupam da regulamentação do exercício das profissões liberais, dos seus aspectos deontológicos e disciplinares. Mesmo quando elas – como a OA, nos seus estatutos – assumem a defesa do “Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, colaborando na administração da justiça. Mesmo aqui, é claro que a defesa do Estado de Direito consiste em defender os cidadãos nos tribunais, em nome da justiça, quando acusados ou afectados nos seus direitos. Na verdade, uma ordem profissional tem como pilar central da sua intervenção o universo da profissão que representa e não o sistema social no seu todo. Para este fim, as sociedades dotaram-se de partidos políticos.

3. Ora, se um BOA, por força do carácter transversal do direito e da crescente jurisdicionalização da sociedade, considera que a sua função consiste em projectar os seus estatutos ao nível da própria instância política, então ele extravasa as suas funções e desempenha mal o cargo para que foi eleito. Na verdade, o seu programa eleitoral, tantas vezes exibido, não pode sobrepor-se à natureza do órgão para que foi eleito, sob pena de o desfigurar. Uma Ordem profissional não é um partido político!

4. E, todavia, nada, em democracia, o impede de fazer a crítica do sistema se abandonar a função de BOA e decidir criar um partido regenerador do sistema social e político, apresentando-se a eleições e pedindo a confiança política dos cidadãos. Deste modo, a sua intervenção já não se confinaria à crítica impiedosa do sistema malsão que tanto abomina, mas seria acompanhada de um programa ético-político verdadeiramente regenerador. Um rosto e um programa para uma democracia ética!

5. De resto, Marinho Pinto tem todas as condições para se transformar num eficaz líder político, uma vez que o seu discurso é perfeitamente congenial ao discurso dos media, quer do ponto de vista formal quer do ponto de vista do conteúdo: torrencial, emotivo e negativo. As suas origens profissionais moldaram-no, mas também o habilitaram a usar com maestria o aparelho mediático. A sua verve moralística e castigadora adapta-se perfeitamente às exigências da tendência tablóide dominante. Logo, o sucesso seria seguro. E os portugueses poderiam ter nele um imponente bastião moral. E, convenhamos, a sua eleição como BOA já indiciava o sucesso, embora num grupo social ainda restrito: a sua força mediática sobrelevou todas as outras variáveis presentes na competição pela liderança. Rogério Alves fora um pálido prenúncio.

6. Na verdade, estamos perante um caso curioso de simbiose de funções sociais com produção de fortes efeitos políticos. Um bastonário, advogado e ex-jornalista, que extrapola, com eficácia, em ambiente mediático, as suas funções até um plano sistémico, ao ponto de produzir um autêntico choque político nacional. O problema é que um agente do sistema judiciário não só comete o grave erro de atropelar todos os procedimentos jurídicos de apuramento da verdade, reduzindo-a à “narrativa jornalística”, como extrapola levianamente esta narrativa até a um nível sistémico, pondo em causa os fundamentos do próprio sistema. O atropelo é tanto maior quanto o faz investido em funções às quais o legítimo sistema formal instituído não reconhece tais competências. Mas, pior: tudo isto é feito em sintonia espontânea com um sistema mediático que tende cada vez mais a capturar e a menorizar as funções de cidadania. A isto chamar-se-ia “populismo ‘light’” se o protagonista não fosse bastonário da Ordem dos Advogados."

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