Ainda assim, segundo dados do Ministério da Justiça (MJ) fornecidos à agência Lusa, mais de oito mil crianças com menos de 15 anos não têm paternidade definida.
«Divergências entre progenitores, comportamentos de risco ou factores sociais [como filhos nascidos de pais não casados antes de 1976] conduzem a que muitas vezes fique omissa a paternidade na declaração de nascimento», refere o MJ.
Antes do 25 de Abril, nascer fora do casamento era ser ilegítimo e muitas mulheres suportaram sozinhas a educação das crianças.
«O peso da palavra era esmagador e de uma tremenda injustiça. A ilegitimidade era não reconhecer o filho e envergonhar-se de o ter tido», diz o pediatra Mário Cordeiro.
Dos 151 889 portugueses com paternidade desconhecida, 108 195 tem acima de 35 anos (mais de 70 por cento).
É o caso de Paulo, que prestes a completar 40 anos nunca foi assumido ou procurado pelo pai e tem no BI uma lacuna que surpreende muita gente.
«Quando casei, fui tratar da certidão de nascimento e a funcionária pensou que havia um erro. Ficou incrédula com a falta do nome do pai», conta à Lusa. Paulo soube desde cedo a sua história.
A mãe assumiu-lhe sempre que o pai não o quisera, contando-lhe todos os pormenores, inclusivamente quem era o homem que biologicamente o tinha gerado.
«Curiosamente sei bem quem ele é. Já me cruzei profissionalmente com ele várias vezes, até porque quis o destino que seguisse a mesma área. Já lhe falei, já lhe apertei a mão até, mas ele não sabe quem sou. Porque nunca quis saber», relata.
Garante que nunca teve vontade de o confrontar e que agora convive bem com a ausência de apelido paterno.
Mas admite que a situação teve consequências: «Não tenho memória praticamente de nada da minha infância até aos sete anos».
Para o pediatra Mário Cordeiro, a verdade contada «de forma calma e progressiva» pode mitigar a desilusão e a dor: «Mas há sempre alguma dose de perplexidade e de sentimento de rejeição».
«As pessoas aguentam muito. E o passado não é necessariamente o futuro. As crianças não estariam condenadas à partida, porque poderiam encontrar outras pessoas de referência que representariam a figura psicológica do pai», defende.
Casos de rejeição de filiação são hoje mais raros, até por imposição legal, com a alteração ao Código Civil em 1976, que pretendeu salvaguardar os direitos fundamentais das crianças.
Além da falta de obrigação legal de filiação, na década de 70 a ciência não dispunha dos meios actuais de determinação da paternidade.
«Esta mudança teve um impacto enorme na qualidade de vida das crianças», refere a socióloga Vanessa Cunha, «na medida em que o estabelecimento da filiação poderá abrir a porta à construção de uma relação entre pai e criança, que de outra forma poderia não acontecer, pelo desconhecimento da situação, pela dúvida».
Também para Mário Cordeiro as vantagens da exigência da filiação são claras «para a criança, para a mãe e para a construção de um país baseado na responsabilidade e na exigência de rigor».
O pediatra sublinha que a nível europeu há até leis que «comprometem estrangeiros que 'façam filhos' quando estão de férias noutro país».
Actualmente, em Portugal, sempre que há um registo de nascimento com paternidade omissa é enviada certidão ao tribunal para processo de averiguação oficiosa.
Nos últimos três anos, entraram nos tribunais 6364 processos, uma média de cinco casos por dia.
E estes processos parecem estar a aumentar: em 2009 houve mais 598 processos do que 2008 e mais 895 do que em 2007. Nem todos conseguem ser resolvidos.
Fontes: Lusa / SOL