A magistrada Maria José Morgado defendeu ontem à noite, no Porto, uma maior fiscalização da corrupção em Portugal, argumentando que só haverá um país equilibrado em termos de justiça quando um corrupto "correr um risco de ser penalizado".
"Um passador de droga sabe que se for apanhado será condenado a vários anos de prisão. Este risco não pende da mesma forma sobre a corrupção, graças a um sistema de justiça burocrático e reactivo", afirmou, considerando que "um excesso de garantias é tão mau quanto a falta delas: em ambos os casos cai-se na impunidade".
A magistrada, que falava no lançamento do livro "Mudar o Poder Local", do ex-vice-presidente da Câmara do Porto Paulo Morais, frisou não ter "o sonho de uma justiça absoluta, que é algo impossível", mas "ao menos de uma justiça relativa".
E questionou: "Porque é que a polícia não cumpre a sua missão, porque é que o Ministério Público não acusa os casos que devia acusar, porque é que os processos de que se fala tanto não correspondem a condenações justas nos tribunais?".
Maria José Morgado pegou na identificação dos "mecanismos sórdidos que regem o urbanismo em Portugal" que Paulo Morais aponta no seu livro para considerar que eles são um terreno fértil para a proliferação da corrupção, que "tem um comportamento viral: contamina, reproduz-se e dá cabo de tudo".
Para este estado de coisas contribuem a "confusão legislativa, que permite ludibriar o mercado e os interesses público" e a "complexidade dos planos directores municipais, alegadamente feitos para defender o interesse público, mas muitas vezes determinados por interesses privados e sindicados", disse.
Apontou ainda a "magia da valorização de terrenos, muitas vezes através de expropriações desumanas e selvagens, apesar de cobertas pela lei, um urbanismo de "alta densidade ocupacional" e a "crónica dependência dos partidos em relação aos produtores imobiliários".
Estes "pecados", juntamente com outros, levam, disse a magistrada, a que "as funções públicas sejam colocadas ao serviço de interesses privados. Isso é crime em qualquer democracia do mundo".
Para Maria José Morgado, o livro de Paulo Morais, que se notabilizou quando denunciou a existência de "pressões ilegítimas" sobre a Câmara do Porto para viabilizar grandes projectos imobiliários, é um instrumento importante na denúncia de todo este "lado invisível da história", principalmente "nesta altura em que se vive um momento de impasse no combate à corrupção".
Paulo Morais disse que o livro resultou de "um exercício de cidadania", após a oportunidade que lhe surgiu de "reflectir a gestão pública" quando assumiu a vice-presidência da Câmara do Porto.
O ex-autarca referiu-se à "perplexidade das pessoas face aos grandes processos mediáticos que terminam em arquivamento".
"Em casos como o do Apito Dourado, as pessoas interrogam-se mesmo como é que no mesmo processo se fala de árbitros, Metro do Porto e construtores civis", acrescentou.
No livro, resultado de uma entrevista a Paulo Morais pelo jornalista António Freitas de Sousa, o ex-autarca afirma: "acontece frequentemente que o planeamento municipal é realizado não em função dos interesses dos cidadãos mas dos interesses da especulação imobiliária ou de outros tipos de interesses corporativos".
"Ou seja, em determinados casos, os planos directores municipais, que deveriam ser concebidos e elaborados enquanto instrumentos geradores de qualidade de vida para os cidadãos, acabam por funcionar como a forma de valorizar ou desvalorizar terrenos", diz, salientando a importância da "confusão legislativa" e da "lentidão burocrática" para manter este estado das coisas.
A situação vigente, considera Paulo Morais, cria "três classes de cidadãos": "os que nada conseguem fazer, nem mesmo aquilo que está previsto na lei; os que são minimamente informados e que, por isso, conseguem fazer o que está previsto na lei, mesmo que por vezes com muito esforço; e depois há os poderosos, que tudo conseguem fazer no meio da confusão legislativa existente em Portugal".
Esta confusão, diz, está relacionada com "uma intenção perversa que tem a ver com os interesses de determinados grupos que estão a dominar o sistema político e o próprio regime e que conseguem fazer tudo o que lhes apetece".
Para Paulo Morais, "é ao poder legislativo, ao Parlamento, que cabe a obrigação de colocar uma pedra nesta bagunça. De uma vez por todas".
Fonte: Lusa e Público