domingo, março 23, 2008

“Novo mapa judiciário é uma oportunidade perdida”

Em entrevista a O PRIMEIRO DE JANEIRO, Paulo Rangel, antigo secretário de Estado da Justiça e deputado social-democrata, tece fortes críticas ao novo mapa judiciário. O advogado considera que se podia ter utilizado a reforma dos círculos judiciários, da autoria de Laborinho Lúcio, em vez de criar novas estruturas que continuarão pesadas e em nada contribuirão para credibilizar a Justiça.


Como comenta, em traços gerais, o novo mapa judiciário?
Acho que esta reforma é uma oportunidade perdida. Não tenho dúvidas de que é necessário reduzir drasticamente o número de circunscrições. A Holanda tem 19, a Bélgica tem 25, a Irlanda tem quatro… não há razão para que países de média dimensão europeia tenham 231 comarcas e 345 tribunais associados a elas. Não faz sentido nenhum. Tem levado a um grande desperdício, em Portugal. A nível de recursos humanos e financeiros, em suma, de investimento, estamos ao mesmo nível da Europa.

Nesse caso, porquê resultados tão maus?
Porque temos uma organização judicial caótica, dispersa; não há concentração nem economias de escala nem gestão dos funcionários, e até dos magistrados, que possa sobreviver a esta dispersão. Só que o Governo não vai longe, porque diz que não encerra tribunais. Isto é uma falácia, estamos a mentir aos portugueses. Não é possível fazer uma reforma da Justiça, obtendo ganhos de celeridade, sem o encerramento de mais de uma centena de tribunais! No fundo, trata-se de uma reforma cosmética. E tem outro aspecto negativo: O próprio desenho geográfico que vai atrás das NUTS. É um erro crasso no plano político-constitucional. O poder judicial não deve fazer coincidir as suas circunscrições com o poder executivo.

Que tipo de modelo defende?
Já tínhamos uma reforma – a dos círculos judiciários, feita pelo ministro Laborinho Lúcio – em que tínhamos 58 círculos e podíamos aproveitar os círculos ou fundir alguns… até porque este número de 39 comarcas é razoável, acho que está bem. Mas, pelo contrário, vamos criar novas unidades que nada têm a ver com a tradição portuguesa.

Que consequências terá?
Os advogados, magistrados, e até a população que mais frequentemente tem recorrido à Justiça, vão estranhar os novos critérios, quando podíamos aproveitar o critério dos círculos. Em certo sentido, a reforma de Laborinho Lúcio estava no bom caminho porque se baseava numa ideia de proximidade, era uma concentração no círculo, mas o tribunal deslocava-se a cada comarca para se realizar lá o julgamento. Portanto, a unidade de gestão era o círculo, o que não implicava que, quando tivesse de haver uma diligência judicial, ela não fosse realizada na proximidade dos cidadãos. É um modelo baseado num tribunal móvel, que se desloca às instalações respectivas para fazer as audiências do julgamento.

No entanto, recomeça-se um novo mapa.
Mais do que isso, vamos mudar a terminologia – tribunais de pequena instância, média instância, grande instância, cível e criminal, vai-se rebaptizar tudo de novo, para nada. Para parecer uma coisa muito moderna…

Pensa que vai gerar muita confusão?
Claro que há aqui este aspecto do período experimental que também adquire contornos duplos. É ambíguo. Por um lado, é bom porque é preciso experimentar a reforma; por outro lado é mau, porque também nos diz que, se esta reforma vai ter efeitos tão benéficos, ainda vai demorar muito tempo até se implantar.

Mas considera que o período experimental será positivo?
Acho que sim, numa reforma com estas características. Mas julgo que não precisávamos de tanta experimentação, se tivéssemos aproveitado as estruturas que já temos.

Este novo mapa contribuirá para que a Justiça fique concentrada nas grandes cidades?
Claro. Acho que esta nova reforma pode trazer algumas melhorias a nível de gestão, menor despesa e desperdício, mas não vai trazer um aumento sensível da celeridade. No fundo, vai manter toda a estrutura pesada que já existe. É evidente que, fazendo uma reforma como eu defendia, mais radical, e que implicaria uma ruptura e um novo modelo, se fossemos por esse caminho, iríamos ter algumas consequências para o Interior. Não podemos esquecer que, em Portugal, dois terços da procura estão no Litoral e dois terços da oferta estão no Interior, em termos judiciais. Temos dois terços dos meios afectos a um terço da procura, e dois terços da procura afectos a um terço dos meios. Não há nenhum país do mundo onde um sistema possa ser eficiente se não tiver os meios devidamente distribuídos.

Este mapa permitirá corrigir tais assimetrias?
Sim, mas não vai fechar tribunais. O caso é saber se, nestas novas comarcas, há casos de trabalho, de menores e de família suficientes. Claro que a minha aposta é nós podermos fazer uma ocupação do território equilibrada, que não seja discriminatória para o Interior, sem com isso, enveredarmos por soluções económicas aberrantes ou insustentáveis. Posso pegar em diversas instituições e povoar o Interior. O que não preciso de ter é um tribunal em cada esquina, porque aquilo que se pretende não é propriamente que as pessoas tenham o tribunal à porta, mas sim, que, quando lá vão resolvam os seus problemas. Já que, o que acontece hoje é que têm um tribunal próximo, mas vão lá seis vezes, pois não é célere.

Não traz proximidade.
Nenhuma. As pessoas não vão ter serviços de Justiça genéricos junto de si. Daí essa falácia. A proximidade não vai existir com esta reforma, ao contrário do que se diz.

Como acha que o novo mapa afectará a credibilidade do sistema?
Uma reforma destas vai gerar uma grande confusão, já que mexe em aspectos que não era necessário mexer; vai gerar incerteza e não contribuirá para credibilizar um sistema que já está altamente desacreditado.

Como enquadra a justiça pelas próprias mãos, nesse contexto?
São duas coisas diferentes. Não é por causa do mapa judiciário que haverá mais ou menos vingança privada. Mas a questão é pertinente, se atendermos à circunstância de que a lentidão dos tribunais é que faz com que, às vezes, haja alguns casos de justiça privada. Claro que nunca a vamos eliminar, devido à natureza humana. Mas é óbvio que um sistema que não eficaz nem credível alimenta a justiça privada. Não tem a ver com ser mais perto ou mais longe, mas sim, com a capacidade de resposta.

Como comenta a nova avaliação dos juízes?
Nesse aspecto, devo dizer que sou favorável à existência de uma figura de chefia dentro dos tribunais, o presidente, tal como está configurado. E não tenho dúvidas de que esse presidente tem de ser um juiz. E parece-me que tem de ser nomeado pelo Conselho Superior de Magistratura e não eleito pelos seus pares. Tudo isto me parece positivo. A questão que se coloca é «qual o limite dos poderes desse juiz?», isso é que está a descontentar o Ministério Público. Mas penso que o problema da avaliação dos juízes não devia ser sumariamente despachado neste diploma. É preciso capacidade de responsabilização perante a opinião pública e a sociedade. Não sei se este é o tipo de diploma onde estas questões deviam ser tratadas. Penso que deviam ser alvo de um diploma próprio.

Que comentário lhe suscita a informatização da Justiça, recentemente tão elogiada pelo primeiro-ministro?
Acho que este Governo, em todas as matérias de Justiça, julga que se resolvem problemas se houver computadores no sistema, informatizando um conjunto de matérias.

A expressão usada foi “eliminar a linha e o cordel para amarrar os processos”.
Isso é tudo demagogia barata. Até em reformas muito elogiadas, como o Simplex, estão em causa muitos aspectos de segurança jurídica sensíveis. Agora estão todos a favor das reformas, daqui a quatro ou cinco anos, são capazes de não estar. Às vezes, com a voragem de tudo simplificar, sacrificam-se valores jurídicos essenciais.

Quais?
A segurança jurídica, em primeiro lugar. Vivemos num país muito dado à fraude, ao pequeno engano… refiro-me aos «simplexes», a reformas como a Admissão da Escritura Pública, que é absolutamente lamentável. Nos processos, esta ideia de que tudo é tramitável informaticamente não corresponde à realidade. Temos um bom exemplo: A reforma do Contencioso Administrativo, onde, em muitos aspectos, o suporte de papel continua a ser essencial e decisivo. Não há dúvida que a informática permite a agilização de muitos processos, mas não pode ser vista, como este Governo a encara, como uma coisa miraculosa, porque não é. E a prova é que não diminui. O Governo anuncia estatísticas, mas, tal como dizia Churchill, «há duas maneiras de mentir: Uma é não dizer a verdade, a outra é apresentar estatísticas». Entre todas as pessoas que lidam com o sistema judicial, não há ninguém que diga que as coisas estão melhores.

Luís Filipe Menezes e o PSD foram muito criticados por acabarem o pacto de justiça com o PS, sem apresentar alternativas. Como comenta?
Compreendo que o PSD tenha rompido o pacto nesta questão do mapa, porque o Governo tinha uma agenda oculta. Isto porque o PSD está de acordo com a solução que o PSD encontrou. O problema foi saber quais são os tribunais certos, onde fica a jurisdição do trabalho, em que autarquia fica a jurisdição da família, em que tribunal… quando se começam a fazer perguntas concretas, o Governo não responde a nenhuma. Não é por acaso que o período experimental atira o redesenho do mapa para além das eleições de 2009. Há aqui uma manobra política em curso. Acho que o PSD fez bem.

Pensa que a oposição interna no PSD foi “esmagada”, como se comentou no último Conselho Nacional?
Não compreendo que não haja espaço para a divergência política dentro de um partido. Não aceito que se venha com o «toque a rebater», só porque uma pessoa ou outra, ou muitas, tenham opiniões diferentes. Acho que a liderança tem toda a legitimidade para conduzir a sua política, mas não para ostracizar ou condenar, ou vir publicamente mostrar grande desagrado com as pessoas que estão em discordância. São discordâncias pontuais, senão as pessoas não estavam no mesmo partido. Mas também se deve respeitar as lideranças e as suas opiniões.

Há um ano, falou em “claustrofobia democrática”. Ainda mantém a mesma opinião?
Tal e qual. Quando falei em propaganda, a nível do sistema de Justiça, é muito disto que se trata. É uma questão de tentar marcar sempre a agenda mediática. A sensação é de que as pessoas não podem discordar ou acontece-lhes alguma coisa. Não é tanto uma cesura externa, mas uma indução à auto-censura. O primeiro-ministro é um bom exemplo. Quando há um militante a levantar a voz, fica muito agastado, se há uma manifestação, ele vai fazer um comício… não é uma lógica de quem governa um país com várias correntes de opinião, mas sim, de uma «concelhia» em que qualquer resposta tem de ser alvo de uma «marcação à zona». Há medo de exprimir opiniões, como é o caso dos professores. Claro que, se for numa manifestação, não têm medo porque estão todos juntos… até ao nível da advocacia existe o medo de interpor acções.

Falou, numa entrevista, em ameaças à democracia, especialmente a nível de Comunicação Social. Qual o seu papel na claustrofobia que refere?
Penso que a Comunicação Social está muito condicionada pela ideia da sua própria popularidade, aquilo que eu chamaria a medição das audiências, em rádio, na televisão e nos jornais. É muito negativo. E chamo especialmente a atenção para o papel que a Comunicação Social tem como produtor de maior mal-estar.


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