O Ministério da Justiça usou em 2008 e no ano passado 326,1 milhões de euros, que estavam afectos a processos judiciais e que, por isso, não lhe pertenciam, para tapar o buraco das contas desses dois anos, sem garantir as responsabilidades perante terceiros. A situação foi detectada numa auditoria do Tribunal de Contas (TC) ao Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça (IGFIJ), que gere os recursos do ministério, divulgada recentemente.
No documento, o TC critica o facto de o IGFIJ contabilizar 160 milhões de euros em 2008 e 166,1 milhões em 2009, dos chamados depósitos autónomos - rendas, cauções e outros quantias afectas a um determinado processo judicial - como receitas extraordinárias, sem reflectir as correspondentes responsabilidades perantes terceiros. O tribunal lembra que foram violadas vários princípios da contabilidade pública e acrescenta que os membros do Conselho Directivo do IGFIJ que, em 2008 e 2009, aprovaram as contas do organismo, sem discordância das mesmas, são responsáveis por estas irregularidades, que "eventualmente configuram infracções financeiras sancionatórias". Isso significa, que estes responsáveis podem ser multados pelo TC.
Também o fiscal único do IGFIJ alerta que "a contabilização da receita extraordinária de depósitos autónomos deve ser conjugada com a devida comprovação de que as responsabilidades estão adequadamente expressas e suportadas por património à guarda do IGFIJ". Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça garante que tem pago todos os reembolsos pedidos, "de acordo com as decisões dos tribunais". Isto porque é necessária uma decisão judicial para que as verbas sejam pagas aos respectivos donos.
Contudo, esta garantia e a indicação de que as verbas devolvidas serão incorporadas nas contas do IGFIJ deste ano desmentem uma afirmação do ex-presidente do instituto, João Pisco de Castro, que em esclarecimentos à Direcção-Geral do Orçamento afirmava que os 160 milhões de euros resultavam de uma estimativa das perdas e prescrições dos montantes afectos aos processos judiciais até 31 de Dezembro de 2008. "Trata-se, portanto, de receitas entradas no sistema judicial que por via da prescrição ou da destruição dos processos nunca serão reclamados por nenhuma entidade", justificava então Pisco de Castro.
Ao TC, nunca foram mostrados os estudos, pareceres e outros documentos auxiliares que terão servido de base a esta estimativa e ao despacho conjunto do ex-secretário de Estado Adjunto e da Justiça, Conde Rodrigues (que entretanto transitou para o Ministério da Administração Interna) e do secretário de Estado Adjunto e do Orçamento, Emanuel dos Santos (que se mantém nas mesmas funções) que permitiram gastar as verbas. Isso mesmo se lê na auditoria, precisando-se que os mesmos "foram solicitados por ofício ao secretário de Estado da Justiça e da Modernização Judiciária [José Magalhães], que reencaminhou para o ministro da Justiça [Alberto Martins], que actualmente tem a tutela do IGFIJ, com conhecimento ao secretário de Estado Adjunto e do Orçamento, não tendo o TC obtido resposta".
Reembolsos garantidos
Confrontado com o porquê desta recusa, o gabinete de Alberto Martins garantiu que "todos os elementos disponíveis sobre esta matéria foram fornecidos pelo IGFIJ ao Tribunal de Contas", uma versão desmentida por uma porta-voz da instituição.
O MJ recusa-se a adiantar o valor dos reembolsos. "Estas responsabilidades, que não tinham ainda sido apuradas com rigor nos exercícios anteriores, foram identificadas no decorrer de 2010, recorrendo ao sistema informático SICJ, que processa os fluxos financeiros associados aos processos judiciais", alega o MJ. E completa: "Esclarece-se ainda que a liquidez necessária para o reembolsos dos depósitos autónomos devidos nestes anos nunca esteve comprometida. Apenas não estavam correctamente identificadas as responsabilidades futuras". O ministério não responde, contudo, à pergunta do PÚBLICO que pedia um valor dos montantes reembolsados.
O uso dos 326 milhões levou o TC a recomendar que aquelas verbas sejam registadas de forma correcta, "conjugando os registos com a devida comprovação de que as responsabilidades estão adequadamente expressas por património à guarda do IGFIJ". O TC diz ainda que acompanhará o cumprimento das suas recomendações e, por isso, "examinará as medidas e procedimentos adoptados" pelo ministério.
Por Mariana Oliveira | Público | 24.12.2010
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