"Um juiz de instrução solicitou à Assembleia da República o levantamento da imunidade do primeiro-ministro, com vista a constituí-lo como arguido num processo por difamação. A alegada difamação reporta-se a afirmações do primeiro- -ministro sobre um jornal da TVI, que ele designou como "jornal travestido" e "caça ao homem". Em resposta, a Comissão de Ética rejeitou a sua competência para o efeito e o procurador-geral da República ordenou o envio dos autos para o Supremo Tribunal de Justiça.
Este caso coloca duas questões jurídicas fundamentais. A primeira questão é a de saber quem tem competência para constituir o primeiro-ministro como arguido. A segunda questão é a de definir o momento a partir do qual a questão da imunidade do primeiro-ministro se coloca.
A constituição como arguido de qualquer pessoa compete ao órgão de polícia criminal, ao Ministério Público ou ao juiz de instrução. No caso em que a constituição como arguido tenha sido realizada pelo órgão de polícia, ela tem de ser convalidada por um magistrado. Contudo, há regras especiais para o primeiro-ministro. Se o crime imputado ao primeiro-ministro foi cometido no exercício das funções, só o juiz de instrução do Supremo Tribunal de Justiça ou o procurador-geral adjunto junto do Supremo podem ordenar a constituição como arguido do primeiro-ministro ou convalidá-la. Se o crime não foi cometido no exercício das funções, então qualquer magistrado judicial ou do Ministério Público pode ordenar ou convalidar a constituição do primeiro-ministro como arguido.
No caso em apreço, o alegado crime foi cometido no exercício das funções de primeiro-ministro, pois o primeiro-ministro falava na sua qualidade de primeiro-ministro. As palavras ditas pelo primeiro-ministro não se referiam a um assunto da vida privada do primeiro-ministro, mas antes à sua reacção política a um jornal da TVI, que o visava na sua qualidade de primeiro-ministro. Portanto, a competência para ordenar e convalidar a constituição do primeiro--ministro como arguido pertencia neste caso aos magistrados do STJ.
Mas os magistrados do STJ só podem ordenar ou convalidar a constituição do primeiro-ministro como arguido se forem autorizados para tanto pela Assembleia da República. É que a constituição de um primeiro-ministro como arguido tem as mesmas garantias da constituição como arguido de um deputado. A lacuna do artigo 196 da Constituição da República deve ser suprida pela aplicação analógica do regime dos deputados. Por uma razão óbvia. O primeiro- -ministro não pode ter um estatuto processual penal inferior ao dos deputados, até porque tem responsabilidades constitucionais acrescidas. E, portanto, se a imunidade começa para os deputados com a constituição como arguido, impõe-se por maioria de razão que ela comece também nesse momento para o primeiro-ministro. Mais: o primeiro-ministro beneficia também, como os deputados, de uma irresponsabilidade penal e civil pelos votos e opiniões que emitir no exercício das suas funções, salvo em caso de abuso da função. Também neste tocante vale analogicamente o regime dos deputados. Qualquer outro entendimento violaria de modo flagrante a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que já se pronunciou várias vezes neste exacto sentido.
Portanto, a Assembleia da República tem competência para decidir sobre o pedido de constituição do primeiro-ministro como arguido. Mas o pedido foi neste caso concreto feito por uma entidade que não tinha legitimidade processual penal para o fazer, uma vez que o pedido só poderia provir dos magistrados do STJ. Dito de outro modo, não se trata aqui de uma questão de incompetência da Assembleia, mas de uma questão de ilegitimidade do requerente. Por isso, a Comissão de Ética decidiu bem, mas pelas razões erradas. E o procurador-geral da República andou bem quando remeteu os autos para o STJ."
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