domingo, novembro 15, 2009

MARQUES VIDAL: “O sistema da Justiça está roto por todo o lado”

Como director da PJ, entre 1985 e 1991, apanhou os primeiros casos de terrorismo - as FP 25 - e de criminalidade económica. o agora romancista relembra o passado ao serviço da lei.

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Como é que surge a ideia para escrever ‘O Amor em Armas’, o seu primeiro romance?

- Há um ano, ano e meio, fui almoçar com o [José Manuel] Barata Feyo, que me falou numa parceria que existia entre a Oficina do Livro e a AMI. Procuravam algo que nunca tivesse sido publicado ou temas de história. Ele disse-me que eu era a pessoa indicada para escrever um romance. Disse-lhe que não. Mas com a insistência dele lembrei-me de umas coisas que tinha lido em Águeda. Lá me convenceu. Entretanto também falei com uma pessoa que se farta de estudar as coisas de Águeda [onde se passa parte do enredo] e que me arranjou o fim do ‘João do Préstimo’ [uma das personagens principais], um homem que passou a vida em guerra. E foi assim que comecei a escrever o livro. E se me perguntar como é que criei as personagens, eu digo-lhe já: todos os heróis que aí estão foi gente que eu conheci nos meus tempos de garoto. Há uma figura que era o meu avô. O meu tio também lá aparece. Fui a figuras que eu conhecia e meti-os psicologicamente em 1908.

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Pôs as suas memórias de infância e adolescência a falar com a história...

- Não são bem memórias. Quando começo a escrever vou aí por adiante sem parar. Sou, como em tudo, um indivíduo descoordenado a fazer as coisas, depois no fim junto as peças e, geralmente, batem certo.

- Pelas descrições que faz no livro, teve de se documentar bem sobre o período das invasões napoleónicas.

- Sempre gostei de História e de Filosofia porque na altura tinha ideia de ir para jornalista, julgava que era uma carreira brilhante e, como tal, pensava em repórter de guerra e coisas assim. Mas depois pensei, vou para jornalismo para quê? Para escrever o quê? E aonde?

- Com o Estado Novo...

- De vez em quando havia aquelas coisas do Raul Rêgo, do Mário Castrim, e era quando os ‘pides’ estavam distraídos, porque um jornalista não tinha hipótese nenhuma de ser jornalista e querer fazer uma carreira brilhante naquela situação. Então fui para Direito.

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Quando é que foi para Coimbra?

- Em 1949, mas a minha vida lá estava toda na Real República do Pra-Kys-Tão.

- O 25 de Abril apanha-o aonde?

- No Ministério das Obras Públicas. Em Outubro de 1972 fui para a Procuradoria-Geral da República (PGR), para auditor jurídico dos transportes. No dia 27 ou 28, o Furtado dos Santos, o procurador-geral que tinha vindo do regime anterior, chamou-me e disse-me que queria pedir um favor, que fosse para a Cova da Moura [onde estava a Junta de Salvação Nacional]. Cheguei lá no dia em que estava a transferir-se para Belém. É lá que conheço pessoas como o Almeida Bruno, o Mário Firmino Miguel, o Galvão de Melo, o Rosa Coutinho, todos da Junta de Salvação Nacional. Fiz uma lei que tinha só dois artigos: ‘1º- Os cheques não podem ser recusados a partir de x valor; 2º - Revogada toda a legislação em contrário’.

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Foi, praticamente, o primeiro legislador do novo regime.

- Exactamente! Há um episódio interessante. Eu é que fiz o decreto da nomeação do Governo e fi-lo com os títulos dos ministros: Dr. Sá Carneiro, dr. Álvaro Cunhal... Mando o decreto para a secretaria e pouco depois vem o secretário dizer que o Álvaro Cunhal não queria que ficasse dr. Disse que ou tirava dr. a todos ou não tirava a ninguém. Tinha de haver um certo formalismo! A não ser que o presidente da Junta me desse ordens em contrário, porque ele é que ia assinar o decreto. Fui, então, ao Spínola, que me perguntou: ‘ó dr., que diferença faz estar dr. ou não estar dr.?’ ‘Diferença não faz nenhuma, desde que o sr. presidente assim o autorize’, respondi-lhe. ‘Então albarde lá o burro à maneira dele!’, disse-me o Spínola. E se for ver o decreto assim ficou, todos com dr. menos o Álvaro Cunhal.

- Apanhou os primeiros problemas com a criminalidade económica, com a história do Fundo Social Europeu.

- Exactamente, e, mesmo assim, o primeiro processo que saiu bem instruído da polícia foi o desvio de 600 mil contos do Amorim, cuja prova foi enviada em 1990 para o Ministério Público (MP) e que prescreveu! Esteve no MP quatro anos, depois passou para a juíza de instrução, onde esteve mais dois anos. A juíza adoeceu e foi substituída mais uns anos, depois houve recurso e ele prescreveu.

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Na altura do Fundo Social Europeu esteve para criar quase uma equipa especial dentro da polícia.

- Exactamente, criei uma equipa só para aquilo, mas que era manifestamente insuficiente. Nessa altura a PJ foi buscar os investigadores para este caso ao sector do combate à droga.

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Havia um problema que era se Portugal avançasse muito com os processos, corria o risco de ter de repor metade do dinheiro a Bruxelas.

- Os ingleses não penalizaram os desvios de dinheiro, apenas os fiscalizaram.

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Na altura colocavam-se esses problemas, era um crime novo...

- Aqui usaram o célebre artigo relativo ao desvio de subsídios, foi uma verdadeira falperra! Em Águeda, por exemplo, houve industriais que construíram piscinas, compraram automóveis e para as fábricas não houve nada!

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Mas que grandes recordações é que retém? Passou para a História como quase um mítico director da PJ.

- Porque não tenho histórias nenhumas.

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Histórias no bom sentido!

- Nem no bom nem no mau!

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Mas retém algumas memórias...

- A ideia que eu faço da polícia é esta: a PJ, o sistema não está mal, desde que os directores tenham o equilíbrio de saber que quem mexe nos processos é o MP e não o ministro da Justiça.

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E acha que isso é assim? Podemos ficar sossegados?

- Não sei se é assim, depende das pessoas.

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Escreveu artigos contra a alteração do Código do Processo Penal, de 1988, que desequilibrou o poder dentro do inquérito...

- Escrevi a favor da autonomia estratégica e técnica. Porque se é verdade que alguns magistrados do MP sabem conduzir uma investigação, a verdade é que a maior parte não tem essa capacidade.

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Esse é que é o problema...

- Eu entendo que todos os magistrados do MP, para além do Centro de Estudos Judiciais, deviam passar três meses seguidos na escola da PJ, para saber como se faz uma investigação no terreno.

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Portanto, vai continuar pelos romances, uma vez que já colocou de parte escrever sobre a polícia.

- Os jornalistas sabem mais da polícia do que eu!

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Mas tinha receio que alguém se chateasse com o que escrevesse?

- Não tinha receio até porque só escrevo o que entendo. O sistema da Justiça em Portugal está roto por todo o lado, há magistrados que fazem coisas incríveis, como é que é possível?! Mas não é só uma má preparação dos magistrados, dos advogados, não é só o processo que é complicado, não é só a alteração permanente da legislação. É que depois juntamos a isso a falta de equipamentos, de pessoal e de organização...

(...)

"AINDA HOJE NÃO ENGULO OS DIAP "

Foi José Cunha Rodrigues, procurador-geral de 1984 a 2000, que levou as primeiras inspecções à PJ, o que causou um grande desagrado. A primeira ainda Marques Vidal era director da PJ. Ainda assim, assegura que a sua relação com Cunha Rodrigues está de pedra e cal. "Continuámos sempre a dar-nos bem. No Verão passado encontrámo-nos e estivemos à conversa. Disse-me que tinha sido injusto com ele, que lhe tinha batido muito. No livro ‘Justiça em Crise’ dou-lhe ali umas porradas porque há uma coisa que ainda hoje não engulo: os famigerados Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP), criados pelo Cunha Rodrigues para controlar os processos e criar o seu próprio poder".

PERFIL

José Marques Vidal tem 79 anos e nasceu em Pedaçães, Águeda. Licenciou-se em Direito, em Coimbra. Foi magistrado do Ministério Público e juiz de direito. Entre 1985 e 1991 foi director-geral da PJ. É pai de dois magistrados: João e Joana Marques Vidal. Em 1996 jubilou-se como juiz do Supremo Tribunal Administrativo.


Toda a entrevista por Eduardo Dâmaso e Helder Almeida, na edição de hoje do
Correio da Manhã.

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