domingo, abril 18, 2010

"Fazer financiamentos ilícitos a partidos é fácil"

Por CARLOS RODRIGUES LIMA e DAVID DINIS

in DN Online

"Fazer financiamentos ilícitos a partidos é fácil"

O estudo que fez com o DCIAP sobre a corrupção provou-lhe uma tese de há muito: que há falta de estratégia e coordenação no combate à corrupção. Mas o sociólogo Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, diz que o problema é mais profundo, sobretudo ao nível da legislação sobre financiamento partidário, que está sem fiscalização. E não vê vontade política para resolver o problema.

Freeport, submarinos, Taguspark, "Face Oculta"… o País está em fogo ou é mais fumo?

Há que distinguir dois aspectos: a intensidade do fenómeno e a sua frequência. Quando falamos de alta corrupção, são casos que escandalizam mais a opinião pública - pelo tipo de montantes, pelo tipo de actores, também pelo tipo de processos de decisão, que são extremamente mais complexos. Estes acabam por escandalizar porque há, da parte dos cidadãos, esta concepção, que é natural, idealista do funcionamento da democracia, criando uma discrepância entre os valores, as expectativas e a prática dos actores. Os casos, apenas quatro ou cinco - e digo apenas - que preenchem as manchetes dos jornais, têm um impacto muito mais estruturante na opinião pública do que cem casos, 200 casos de pequena corrupção em cartórios notariais ou o que quer que seja. Esses não fazem manchete, mas continuam a afectar diariamente a vida das pessoas.

Seguindo o estudo que realizou com o DCIAP, é muito difícil levar a julgamento os casos graves.

A repressão da corrupção em Portugal assenta muito na denúncia.

E o Ministério Público não é proactivo.

Está à espera que lhe passem a bola. Há áreas, como a do financiamento político, onde os casos se repetem sempre, assumem o mesmo formato. Aí, por exemplo, convém ser proactivo, fazer uma análise de porque é que existe este risco, porque é que existem estas estruturas de oportunidade, e intervir preventivamente. Nós não estamos aqui única e exclusivamente para reprimir e para enviar culpados para a televisão - não queremos é que existam culpados, que se antecipe a possibilidade da ocorrência deste tipo de situações. Daí que a prevenção não pode andar desassociada da repressão e, infelizmente, no caso português, anda. Aliás, até o modelo que escolheram como resposta ao compromisso que tinham assumido perante a convenção das Nações Unidas foi a opção mais económica: em vez de se optar por uma agência especializada única, com competências de prevenção e repressão, optou-se por ter entidades separadas [criando o Conselho de Prevenção da Corrupção no Tribunal de Contas, no lugar de uma entidade que já existiu com competências semelhantes].

Ou seja, o novo órgão não mudou nada?

Esta opção das entidades separadas é mais económica porque, geralmente, elas já existem. É uma questão de pequenos ajustamentos, umas afinações aqui e ali. O pouco trabalho de prevenção que estava a fazer-se em Portugal era pelo Tribunal de Contas, embora nunca tenha colocado o nome aos bois. Agora esse terreno já está queimado para qualquer outra possível solução, nomeadamente a que se vinha defendendo, que seria a criação de uma nova alta autoridade contra a corrupção.

O que foi feito nos últimos anos é, de alguma forma, inibidor de actos de corrupção? Pressente que há mais atenção?

Não há essa percepção, nem com o Conselho de Prevenção nem com algumas reformas em matéria de branqueamento de capitais. Aquilo que me parece relativamente a muitas medidas que são pensadas e implementadas é que elas não estão articuladas, não há uma estratégia que diga como é que uma funciona com a outra. Por exemplo: cria-se um Conselho e exclui-se a Entidade das Contas desse grupo, quando sabemos que a maior parte dos grandes casos (que neste momento continuam) estão ligados ao financiamento político, fazem parte desse núcleo de ocorrências ou de estruturas de oportunidade para a corrupção que são sistémicas. Não têm a ver com a cunha e com o pequeno tráfico de influências. Estamos numa corrupção que é alta em recursos e que é alta em frequência, cada vez mais alta em frequência. É claro que não vemos isso, mal feito fora se tivéssemos todos os dias nos jornais um novo caso de financiamento ilícito, mas quem está próximo dessa realidade, isto é, membros dos partidos, staffs dos partidos, Entidade das Contas, Comissão Nacional de Eleições - que tinham alguma tradição também nisto e sabem perfeitamente o que se passa -, sabem que basta fazer uma monitorização de gastos de campanha para perceber o quanto é fácil haver financiamentos ilícitos, haver pagamentos de despesas por terceiros, haver favores pagos agora para benefícios a posteriori.

E é fácil descobri-lo?

Não. Não é fácil de provar essa relação entre o donativo ou pagamento de despesas por terceiros agora e os benefícios que eu vou retirar daqui a um ano. Até porque há sempre aquele problema de "eu se calhar apostei no cavalo errado e ele não vai ganhar". Geralmente aqui não acontece, e a nível local acontece muito menos porque há uma previsão muito grande de quem vai ganhar e, portanto, muito do financiamento passa por redes clientelares que estão bastantes cristalizadas a nível local, quer dizer, são as mesmas empresas que negoceiam com a câmara e que vendem praticamente todos os contratos.

Mesmo a nível nacional, é mais fácil ser corrompido quem está no poder?

Os partidos do Governo são mais permeáveis a este tipo de corrupção, claro.

Tem estudado legislação não só portuguesa mas exterior a Portugal. Temos um problema maior do que o que se verifica lá fora?

As opiniões dividem-se tanto... é complexa a questão, não é fácil. Há o problema do número, discute-se sempre o volume da legislação existente, se é muita, se é pouca. Eu, geralmente, fujo do enfoque de volume, concentro-me mais no enfoque da qualidade dos diplomas. O que acontece é que estes processos, o processo de aprovação de uma lei anticorrupção, não é uma questão neutra. Há interesses fortes, e que não têm de ser interesses necessariamente partidários, até podem ser corporativos.

Que conseguem neutralizar as leis?

Discute-se muito a introdução de um novo mecanismo, que vai melhorar o combate à corrupção, etc. E, quando se passa à fase do seu desenho e discussão, começam a cair as peças do puzzle e começa a ficar um instrumento completamente enfraquecido, com uma norma muito forte, mas sem dentes para morder. E isso acontece com muitos diplomas, acontece com a lei do financiamento político, acontece com o controlo da riqueza dos eleitos para cargos públicos, acontece com o crime de tráfico de influências. Ainda que tenha sofrido uma alteração não mudou o estado de coisas - basta ver as estatísticas, não aparece nenhum. Não existe! E, de facto, existe e muito.

Mas também os tribunais passam anos e anos a discutir se aquilo é tráfico de influências ou se é uma cunha...

Exactamente. Há aqui um problema de formação! Enfim, não será a única questão aqui. Há sempre este desespero de trazer algo novo, de procurar olhar a modelos de sucesso. E é muito difícil de definir o que será um modelo de sucesso. Por exemplo, no caso espanhol, não o foi por terem o crime do urbanismo, mas se calhar por terem uma magistratura mais audaz. Se calhar já conseguiam fazer mais sem o crime urbanístico do que a magistratura portuguesa. Eu dou várias vezes o exemplo do caso francês, onde as investigações que estavam a decorrer eram volumes e volumes de processos de financiamento ilícito. E a classe política, perante esta ameaça da magistratura, decidiu lançar uma lei de financiamento em que criou uma cláusula de amnistia, que é uma coisa impensável. É um exemplo de como estas leis são feitas de interesses corporativos. Eu não fiquei surpreendido quando vi a lei de financiamento político, cá, ser aprovada em 2009 por todos os partidos excepto um. Duvido que tenha havido uma lei até hoje que tenha sido aprovada com um consenso tão grande no Parlamento.

O seu estudo para o DCIAP levanta esta dúvida: há um desfasamento entre a percepção e a realidade, ou o sistema de justiça só consegue chegar à pequena corrupção?

As duas coisas. O sistema consegue chegar mais facilmente à pequena corrupção do que à corrupção complexa, mas aí há problemas de formação, há problemas de coordenação, há problemas de recrutamento em determinadas matérias. Não estamos a atingir, de facto, o core do problema. Isso afecta a capacidade do aparelho repressivo de lidar com casos complexos e vai-se vendo a braços com alguns desses casos por uma série de infelizes coincidências: ou porque alguém foi lesado nesse negócio, meteu a boca no trombone e deu informação muito detalhada sobre esses crimes

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