Por André Lamas Leite.
In Jornal "Público"
"O acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), ontem proferido, no caso Pereira Cruz e outros c. Portugal suscita inúmeras reflexões. Atenta a natureza deste espaço, focar-nos-emos somente no aspecto central e mais controverso, necessariamente em linguagem que se procurará perceptível por não juristas e não fugindo ao “incómodo” de tomar posição.
A primeira nota a sublinhar é que o aresto é muito claro ao dizer que não toma – nem podia – posição quanto à justeza das condenações no dito “processo Casa Pia”. Enquanto cidadãos, temos de partir do princípio que, talvez o mais escrutinado dos processos criminais em Portugal, objecto de sucessivos recursos para a Relação de Lisboa, o Supremo e o Tribunal Constitucional (TC), corresponde à verdade judicial, ou seja, aquela que, mesmo não sendo a verdade histórica, é conforme com as provas produzidas ou examinadas em julgamento.
O único argumento ao qual o TEDH entendeu assistir razão a Carlos Cruz (CC) foi o de violar o art. 6.º, n.º 1 da CEDH a não admissão, pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), do que a sua defesa entendia serem novos elementos probatórios, nomeadamente entrevistas a assistentes no processo e um livro escrito por uma das vítimas e que, segundo CC, enfermavam de contradições com a prova julgada em 1.ª instância. Mais se requeria a inquirição de outras testemunhas, assistentes e mesmo de um co-arguido. O TRL alicerçou a sua decisão no esgotamento do prazo processual até ao qual podem ser oferecidos meios de prova (art. 165.º do CPP), mas também por considerar que os mesmos não eram necessários para o esclarecimento dos factos. Juntou ainda que “a prova do que foi dito (…) a um meio de comunicação social não pode confundir-se com a demonstração diante de um tribunal de que um facto ocorreu". Como decidiu o nosso TC, ainda haveria a possibilidade de o arguido lançar mão do recurso extraordinário de revisão, mas aí tem razão o TEDH ao entender que esta via seria excessiva, atenta a jurisprudência constante do STJ no sentido de considerar que só pode ser tida em conta uma prova cuja falsidade tenha sido judicialmente declarada, o que, no caso, levaria anos e constituiria um meio de defesa desproporcionado e violador dessas garantias.
O pomo da discórdia reside em saber se, como por vezes tem sucedido com alguma jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo, não terá ele mesmo ultrapassado os limites da Convenção que lhe cabe cumprir e fazer cumprir. Neste ponto, recordo que a decisão foi tirada com 4 votos a favor (juízes De Gaetano, Pinto de Albuquerque, Vehabovic e Kuris) da existência de violação das regras de um processo justo e equitativo, contra 3 (juízes Yudivska, presidente da secção, Motoc e Paczolay). Julgo que a razão está do lado do voto dissidente."
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