"A abertura do Ano Judicial é uma cerimónia solene, a que comparecem as principais personalidades da vida judiciária nacional, e que se reveste de um duplo propósito.
Por um lado, visa dar público testemunho da importância essencial que a Justiça possui no quadro dos poderes soberanos do Estado, prestando a devida homenagem aos que contribuíram para o prestígio do sistema judicial e também àqueles que, todos os dias, fazem cumprir o Direito nos nossos tribunais, por vezes em condições difíceis e de grande exigência.
Por outro lado, a abertura do Ano Judicial deve constituir momento privilegiado para uma reflexão sobre a Justiça que os Portugueses desejam ter – e que não é, manifestamente, aquela que actualmente existe.
Uma cerimónia como esta não pode ser um acto meramente protocolar nem uma rotina vazia de sentido.
Os Portugueses não compreenderiam que assim fosse, tal a percepção notória que têm – e que diariamente experimentam – dos problemas indesmentíveis que afectam a boa realização da Justiça no nosso País.
Desde há muito que se alude a uma «crise da Justiça».
E, de facto, são vários e inegáveis os sintomas dessa crise: há uma falta de confiança muito generalizada dos cidadãos no seu sistema judicial, do mesmo modo que são frequentes as atitudes e as declarações públicas de responsáveis da Justiça que em nada contribuem para o prestígio deste pilar do Estado de direito democrático.
Verifica-se, além disso, que a Justiça é atravessada por querelas que, frequentemente, são travadas na praça pública, numa prática que a todos prejudica, a começar pelos próprios agentes judiciários no seu todo.
Acresce que a relação do sistema judicial com a comunicação social, marcada por frequentes violações do segredo de justiça e algumas ambições de protagonismo mediático, não tem sido adequada a preservar a dignidade do poder judicial e das magistraturas.
A estes problemas, que assumem uma índole cultural, juntam-se outros, de cariz funcional, que se prendem com a eficiência do aparelho judiciário.
Há domínios em que as disfunções estão perfeitamente identificadas, como sucede com a investigação criminal, a acção executiva ou as pendências na jurisdição tributária, sem que, ao longo de tanto tempo, tenha havido qualquer intervenção de fundo susceptível de pôr cobro a um estado de coisas que degrada a imagem das instituições, lesa os direitos dos cidadãos e afecta gravemente o funcionamento da nossa economia e a capacidade de atracção de investimentos externos.
De um ponto de vista cultural, a Justiça necessita de credibilidade.
Numa perspectiva funcional, a Justiça, para ser justa, exige eficácia e celeridade.
À crise da Justiça vem agora juntar-se o problema da justiça da crise.
O sistema judicial é, também ele, interpelado pela crise económica, financeira e social do País, num esforço de que ninguém pode alhear-se.
A Justiça da crise tem de ser uma Justiça adequada à actual situação económica e social do País, numa jurisprudência atenta às realidades. Num tempo em que os Portugueses atravessam dificuldades que frequentemente assumem contornos dramáticos, a Justiça tem de ser, como nunca, uma justiça eficaz.
A Justiça tem de reforçar a sua autoridade institucional e cumprir em tempo útil o imperativo de «dizer o Direito» nas diversas situações da vida.
Neste quadro, importa proceder a uma reforma profunda da Justiça, que, no essencial, permanece por realizar.
Não compete ao Presidente da República definir os contornos precisos e as medidas concretas da reforma que se afigura urgente, e que é, em simultâneo, uma reforma cultural e funcional. Mas cabe ao Presidente dar o contributo da sua palavra para que sejam claramente enunciados os pressupostos em que a reforma da Justiça tem de assentar.
Neste sentido, é essencial que seja assumido pelo conjunto dos responsáveis deste sector, de forma inequívoca, que uma intervenção de fundo no sistema judicial nunca poderá ser feita num ambiente de crispação institucional e de conflitualidade entre os diversos agentes da Justiça.
É imprescindível ultrapassar as tensões, que são visíveis, entre o poder judicial e o poder político, devendo ambos compreender que este não é um tempo de confrontos mas de cooperação patriótica.
Nenhum operador judiciário é dispensável para a mudança que corresponde, sem dúvida, a uma das principais reformas de que Portugal actualmente necessita. Nenhum protagonista do sistema pode ser marginalizado ou ter a pretensão de se auto-excluir do cumprimento de um imperativo de cidadania. De todos se espera uma atitude de responsabilidade.
Ao contrário do que sucede noutros domínios da acção do Estado, as causas da crise da Justiça são exclusivamente nossas e a sua resolução depende exclusivamente de nós, não decorrendo da intervenção de entidades externas.
Se, por um lado, esta constatação significa que as mudanças a empreender poderão ser mais fáceis e céleres, por outro lado a ausência de estímulos externos pode agravar a tendência para o imobilismo ou para o adiamento dos problemas.
Em síntese, o primeiro pressuposto de uma autêntica reforma da Justiça assenta na ideia de que não é possível alterar o actual estado de coisas num clima de conflitualidade e de crispação.
Um segundo pressuposto da mudança corresponde a uma noção simples: não é possível reformar a Justiça contra aqueles que, no quotidiano dos tribunais, irão aplicar as medidas adoptadas pelo legislador.
Tem de ser abandonada, em definitivo, a tendência do legislador para actuar de modo errático, cedendo a impulsos de ocasião, numa lógica experimental que introduz elementos de instabilidade e imprevisibilidade no nosso sistema jurídico. A certeza do Direito não se compadece com experimentalismos legislativos.
Se não é possível reformar a Justiça em conflito com os agentes judiciários, tal não significa que a reforma tenha de ser feita exclusivamente de acordo com o entendimento desses agentes.
É o poder político democraticamente legitimado que, através de consensos partidários transversais, deve liderar o processo de mudança.
Mas tem de fazê-lo ouvindo os operadores da Justiça, ao invés de ignorar aqueles que possuem o saber da experiência conquistada no dia-a-dia judiciário. Nenhuma reforma da Justiça que se queira profícua pode ser empreendida sem ter em conta o contributo de todas as profissões jurídicas.
Um terceiro pressuposto da reforma corresponde, pois, à necessidade de, sem ceder a pretensões corporativas, articular as propostas de reforma com aqueles que, pela sua proximidade concreta aos problemas da vida judiciária, têm de tomar parte activa nas mudanças que se impõem.
Emerge daqui um quarto pressuposto da reforma da Justiça portuguesa.
Esta, para ocorrer de forma efectiva, tem de ser interiorizada pelos agentes judiciários, mais do que imposta a partir do exterior pelo poder político.
São os operadores judiciários, todos eles, que têm de compreender a urgência da mudança. Sem essa compreensão de pouco vale alterar códigos e proceder sucessivamente a mudanças legislativas que, de tão frequentes, adensam a complexidade do nosso sistema jurídico muito para lá dos limites do razoável.
Para que os agentes judiciários compreendam o alcance e o sentido da sua função nas democracias contemporâneas é imperioso que tenham em conta a natureza da legitimidade própria que possuem.
Não se trata de uma legitimidade democrática directa, que advenha do sufrágio popular, mas de um outro tipo de legitimidade, não menos importante: a legitimidade de exercício. É pelo modo como exercem o seu múnus que os magistrados se legitimam face aos cidadãos.
Ora, uma legitimidade de exercício é particularmente exigente e responsabilizante. Desde logo, porque requer uma atenção muito particular ao sentido mais profundo da judicatura: administrar a Justiça em nome do povo.
A legitimidade de exercício exige também que os magistrados conquistem o respeito dos seus concidadãos, o que pressupõe uma atitude de humildade cívica, de contenção verbal e de dignidade pessoal.
A Justiça, para ser credível aos olhos do povo, para além da independência, objectividade e qualidade das suas decisões, tem de ser responsável no comportamento dos seus principais protagonistas.
A confiança no funcionamento da Justiça advém das percepções que a opinião pública vai tendo todos os dias, acompanhando e ouvindo as intervenções públicas dos seus altos responsáveis. Daí a importância de, no uso da palavra, os protagonistas do sistema judicial contribuírem para a sua dignificação.
A Justiça é ainda expressão da soberania do Estado. Daí que a formação e a acção dos magistrados tenham de ter presente essa ligação ao exercício exigente de uma missão pública de soberania estadual, não se compadecendo com opções que desvalorizem esse princípio essencial.
Como Presidente da República, sou o primeiro dos inconformados com o estado actual da justiça portuguesa.
Sucedem-se alterações legislativas, confia-se, porventura em excesso, nas virtudes das novas tecnologias, mas, com frequência, esquecemo-nos de que um programa de reforma judicial tem de partir de um diagnóstico objectivo dos problemas, o qual só pode ser realizado num ambiente de apaziguamento de tensões e de concentração no essencial.
O essencial são os destinatários da judicatura, as pessoas, o povo em nome do qual a Justiça é administrada.
Os cidadãos mostram-se pouco confiantes no seu sistema judicial e as empresas encaram-no como um factor de entorpecimento da actividade económica.
Ao apelar à congregação de vontades e à união de esforços para uma reforma profunda e uma mudança da Justiça manifesto a minha reiterada consideração e respeito pelos operadores judiciários.
É precisamente em homenagem à nobreza da sua função que entendi ter o dever, como Presidente da República, de exortar os agentes políticos e judiciais a empreenderem essa reforma profunda e urgente.
Estou certo de que, com o empenho e a dedicação dos nossos magistrados e outros agentes judiciais, conseguiremos vencer este desafio.
Obrigado."
Fonte: Presidência da República
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