Não se arme em santo. De uma maneira ou de outra todos os portugueses já fizeram ou pediram um favor. Um puxar de cordelinhos. Um toque aqui. Uma palavra ali. Um primo conhecido acolá. Para facilitar a resolução de um problema. Apressar a entrega de uns papéis, furar a fila na repartição de Finanças, antecipar a marcação de uma consulta para um parente doente ou conseguir a vaga num colégio de elite. O país vai nu e hoje, mais do que nunca, todas as redes de contactos são válidas e preciosas para sugerir um filho, um sobrinho, um amigo que está à procura de emprego.
A cunha é bem portuguesa e parece fazer parte do nosso ADN. Começa pelo "agradinho". O galo capão que se entrega nas mãos do senhor doutor, as flores que se oferecem à senhora professora, o whisky de 15 anos que chega à mesa do "soutor" juiz, a casa de férias emprestada ao senhor árbitro ou ao senhor presidente da Câmara.
Estes são alguns cabazes de favores que não se entregam só no Natal. Isso faz de nós um país de cunhas? Parece que sim. Basta referir que num inquérito realizado aos portugueses, em 2008, concluiu-se que toleramos bem o tráfico de influências e consideramos que é até um atalho necessário para ultrapassar um Estado lento e desatento aos nossos direitos e necessidades.
No livro 'A Corrupção e os Portugueses. Atitudes, Práticas e Valores', de Luís de Sousa e João Trigães, publicado pela RCP Edições, somos apresentados como um país de corrupçõezinhas. "Que não assentam necessariamente no suborno e na troca directa de dinheiro que compra decisões, mas construída socialmente ao longo do tempo, através da troca de favores, de simpatia, de prendas e hospitalidade". Pedimos cunhas, pagamos favores. Mas não somos generosos no delito.
"O grosso da corrupção que chega a tribunal é de 100 a 500 euros, raramente vai além desses valores". Os escândalos que envolvem milhões são inconclusivos ou arquivados. É essa uma das ideias que fica da leitura do relatório 'A corrupção participada em Portugal - 2004-2008' realizada pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), em parceria com o ISCTE.
Não é cunha, não senhor! Perguntámos a várias personalidades da sociedade portuguesa se tratavam a "cunha" por tu, por você, ou se lhe viravam a cara. Ao contrário do que se esperava, não houve espaço para o politicamente correcto. O ex-presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, respondeu que vai morrer como nasceu: "Incapaz de ser indiferente à injustiça e às dificuldades dos mais desprotegidos." Tal como ele, Alberto da Ponte, CEO da Central de Cervejas, assume, sem pruridos, que este não lhe é um tema estranho. "Foram inúmeras as cunhas que me pediram e sempre adoptei um princípio - Isto não é uma cunha, não é não senhor. É uma proposta genuína e uma potencial oportunidade que deve ser analisada com toda a seriedade. Explico-me: A cunha é incontornável, um dever de objectividade. O de julgar seriamente as suas reais virtudes." Alberto da Ponte entusiasma-se com o assunto e até explica que há quatro tipos de cunha:
A profissional: "Conheço um rapaz óptimo, por acaso meu primo. Podes...?"
A ocasional: "Grande festa esta. Já que temos este amigo comum vou-lhe oferecer em primeira-mão..."
A maquiavélica: "Sou grande amigo do... Ambos ficaríamos agradecidos se..."
A concorrencial: "Tenho o seu concorrente interessadíssimo. Mas isto pode ser seu por..."
O presidente da Sagres remata o assunto como um profissional da bola: "Para mim nada se descarta. Tudo é uma proposta, nada é cunha."
Talvez o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros António Martins da Cruz tenha pensado o mesmo quando conseguiu que o colega da Educação, Pedro Lynce, alterasse a lei do acesso ao ensino superior para que a sua filha entrasse no curso de Medicina. O escândalo em 2003 foi tal que passou a manchete nos jornais e levou à queda dos dois ministros do governo de Durão Barroso.
Mas nem todos pensam assim. O padre José Carlos Belchior, responsável durante muitos anos do Colégio São João de Brito, um dos mais selectivos e concorridos de Lisboa, foi alvo de incontáveis pedidos de cunha. Recusou sempre. "De comum acordo com os membros da direcção, estabelecemos uma lista de prioridades. Pessoalmente, era mesmo intransigente na observância rigorosa destes critérios". Essa intransigência só abriu duas excepções. "Por dever de Estado: ao filho do Presidente da República e ao neto do secretário-geral da ONU".
E quanto aos galos-capões, whiskys ou mesmo cheques chorudos oferecidos debaixo da mesa em troca de uma inscrição? "Só tenho conhecimento de um caso. O secretário do Colégio recebeu em casa um pequeno embrulho que, com naturalidade, abriu na presença dos filhos: um monte de notas de conto com um cartão de uns pais a interceder pela entrada do filho. Na manhã seguinte, expôs-me o caso e combinámos a maneira de devolver a 'prenda': converter as notas em cheque e enviar, juntamente com o boletim de pré-inscrição, aos referidos pais; o que foi feito".
A cunha anda à solta por aí. Pode chegar a todas as casas, famílias e partidos. Nos governos de Cavaco Silva, o terreno foi fértil para as senhoras dos senhores do poder. Em 1992, a mulher do ministro da Defesa Fernando Nogueira era adjunta do secretário de Estado da Saúde. Fátima Dias Loureiro, mulher de Dias Loureiro, incluiu um séquito de 'santanetes', ou seja, um staff de girls para Pedro Santana Lopes, na época em que foi secretário de Estado da Cultura.
Mas há mais. No partido socialista, por exemplo, Joel Silveira, genro do patriarca Almeida Santos, foi colocado na Alta Autoridade da Comunicação Social. E a sua mulher, filha de Almeida Santos, trabalhava na Assembleia da República, onde o pai era deputado e depois presidente. Coincidências? Provavelmente... ou talvez não.
Não é preciso ler Antero de Quental ou Eça de Queirós para se saber que no nosso país a cunha é uma instituição. Tal como o pastel de nata. O galão. O fado. O futebol. Ou o vinho tinto. Mas num país que parece pródigo em cunhas, não deverão ser os políticos também filhos de Deus? Obviamente, não. De acordo com o estudo "Corrupção, Ética e Democracia - Um Caso Português", coordenado por Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, os resultados sugerem que os cidadãos estabelecem padrões mais elevados para os políticos do que para si próprios.
Quando confrontados com a hipótese de uma pessoa dever usar os seus conhecimentos para ajudar a família e amigos a arranjar emprego, a maioria respondeu que concorda (81%), o mesmo não acontecendo quando o mobilizador da cunha é um político. No dito inquérito, quando as pessoas foram confrontadas com a pergunta se os políticos poderiam utilizar os seus contactos para ajudarem os seus amigos a encontrarem trabalho a maioria discordava (66%). Portanto, os políticos não são filhos de Deus. Talvez enteados.
Madeira, a ilha das cunhas? Não é preciso ter muitos carimbos no passaporte para se saber que não há nada que se compare à ilha da Madeira. Não só pela beleza natural ou incontinência verbal do seu líder, mas por ser um arquipélago pródigo em tachos, favores e compadrios. Gil Canha, fundador do jornal "O Garajau" e actual vereador da Câmara do Funchal é a voz mais forte e crítica ao Governo de Alberto João Jardim. Com sotaque pronunciado e discurso satírico, denuncia: "Vivo na ilha das cunhas. Até pela nossa localização geográfica, estamos perto de África e longe de Deus. Na Madeira ainda não se deu o 25 de Abril. Existe uma oligarquia alapada ao poder há mais de 30 anos e, nesta circunstância, o regime jardinista criou uma autêntica rede de favorecimento, uma espécie de central de favores gigante que além de satisfazer essa mesma oligarquia também é um instrumento de dominação política".
Gil Cunha, que já foi alvo de vários processos por parte do Governo de Jardim, denuncia que "uma forma deste regime calar os potenciais críticos ou dissidentes é arranjar 'tachos' para todos". O vereador vai mais longe na acusação: "A maioria dos familiares directos do Governo Regional trabalha quase todos no executivo ou em empresas ou sociedades por este tuteladas. Por exemplo, a filha do Jardim é chefe de gabinete de Cunha e Silva (vice-presidente do Governo Regional da Madeira), a esposa de Cunha e Silva por sua vez, ocupa o cargo de destaque, o líder parlamentar do PSD, Jaime Ramos, tem o filho como deputado, o sobrinho do presidente da Assembleia Legislativa também o é e a maioria dos filhos dos secretários têm todos os seus tachos assegurados. A rede é tentacular e extensa, o nepotismo na Madeira é uma instituição e tem efeitos terríveis".
O vice-presidente da Assembleia da República e porta-voz do Governo de Jardim, Guilherme Silva, não se escusa a responder a estas acusações: "Só faltava que os filhos de responsáveis políticos ou de entidades públicas fossem prejudicados das suas oportunidades e carreiras por força dos cargos que os pais ocupam. Dos casos que são citados e que conheço, o acesso a todos esses lugares foi por exclusivo mérito próprio. Quando se quer criar justiças que aparentam ser formalmente correctas criam-se normalmente as maiores injustiças".
Cunha ou networking? Num tempo em que os empregos já não são para toda a vida, nem tão-pouco as profissões, ter uma boa rede de contactos pode salvar muitas cabeças. E isso é networking. Seja através das redes sociais (Facebook, Twitter), profissionais (linkedIn, The Star Tracker) ou da lista de conhecimentos que uma pessoa reúne ao longo da carreira. Depois, quando necessário, basta accioná-los.
José Caetano Silva, gestor da empresa de recursos humanos Talent Search traduz esta tendência: "Hoje, qualquer profissional que tenha algum desejo de gerir a sua carreira tem de considerar o networking como fundamental. A grande vantagem é permitir chegar a determinadas oportunidades de mudança ao longo da vida profissional". Mas onde termina o networking e começa a cunha? É José Caetano Silva quem tira a teima: "Quando não estão em causa as qualidades, o que conta é quem indicou, isso é recomendação pessoal, portanto cunha, enquanto que o networking é uma recomendação profissional para colocar a pessoa certa no lugar certo."
Também Pedro Brito, consultor da empresa de gestão de talentos Jason Associates, considera que "a nossa rede de contactos pode ajudar-nos a tomar melhores decisões e a fazer melhores escolhas, mas exige que as relações sejam cultivadas. Não serve de muito ter uma enorme rede de contactos se não existir uma relação de confiança. O networking exige trabalho e disciplina". Foi você que pediu uma cunha?
Por Bernardo Mendonça e Cândida Santos Silva (www.expresso.pt)
2 comentários:
Despedimento colectivo de 112 trabalhadores no Casino Estoril
Nestas condições não constituirá um escândalo e uma imoralidade proceder-se à destruição da expectativa de vida de tanta gente ? Para mais quando a média de idades das mulheres e homens despedidos se situa nos 49,7 anos ?
Infelizmente, a notícia de mais um despedimento colectivo tem-se vindo a tornar no nosso país numa situação de banalidade, à qual os órgãos de comunicação social atribuem cada vez menos relevância, deixando por isso escondidos os verdadeiros dramas humanos que sempre estão associados à perda do ganha-pão de um homem, de uma mulher ou de uma família.
Mas, para além do quase silêncio da comunicação social, o que mais choca os cidadãos atingidos por este flagelo é a impassibilidade do Estado a quem compete, através dos organismos criados para o efeito, vigiar e fazer cumprir os imperativos Constitucionais e legais de protecção ao emprego.
E o que mais choca ainda é a própria participação do Estado, quer por omissão do cumprimento de deveres quer, sobretudo, por cumplicidade activa no cometimento de actos que objectivamente favorecem o despedimento de trabalhadores.
Referimo-nos, Senhores Deputados da República, à impassibilidade de organismos como a ACT-Autoridade para as Condições do Trabalho e DGERT (serviço específico do Ministério do Trabalho) que, solicitados a fiscalizar as condições substantivas do despedimento, nada nos respondem.
Mas referimo-nos também à Direcção-Geral da Inspecção-Geral de Jogos, entidade a quem cumpre fazer cumprir as normas legais da prática dos jogos, que não hesita em violar os imperativos da Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro, para possibilitar à empresa o despedimento dos porteiros da sala de jogos tradicionais.
A corrupção não existe, agora chama-se: Ciência Politica Utilitária
Pois eu cá detesto o "networking" (a palavra da moda que serve para designar algo pior e mais temível do que a própria cunha; eu chamar-lhe-ia "máfia dos tempos modernos"), bem como os arranjinhos que se fazem nos meandros das redes sociais. O mundo do trabalho actual, constituído por seres todos eles supostamente dinâmicos, pró-activos, com gosto pelo trabalho em equipa e muito sociáveis, sinceramente, dá-me vómitos de tão enjoativo. Malditos gestores de talentos e de redes de contactos, que estão a minar por completo a sociedade e o mercado de trabalho. Eles que aproveitem bem esta maré de sorte, pois um dia as pessoas vão perceber que não precisam deles para nada.
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