segunda-feira, fevereiro 21, 2011

De como se nasce e se vive Juiz!


Numa época, como a nossa, de esvaziamento cultural, em que os valores e as referências se perdem em cada esquina e em que parece dominar uma impenitente abstracção individualista, com cada qual a pensar o bem e o mal apenas e só por aquilo que julga ser o seu bem ou o seu mal, qualquer referência desprimorosa é instantaneamente potenciada por órgão de comunicação social (e pode perguntar-se, com João Caupers, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa "Que raio se ensina nos cursos de comunicação e jornalismo?) sempre disponível para fazer recair sobre os tribunais e a Justiça os males que muitas vezes lhes não são assacáveis, mas sempre sempre lhe são imputados.
O mal é que estas vozes que diminuem ou amesquinham os tribunais e as Magistraturas se esquecem sempre de lembrar (e de se perguntar) o que fica quando a Justiça que temos for definitivamente "enterrada". Quem fará então a Justiça? As televisões, os programas das manhãs ou os directos nas rádios? Os comentadores anónimos na net? Ou essas mesmas vozes que engrossam ou comandam o coro dos ataques e que tantas vezes são responsáveis pelo estado a que a justiça chegou?
«Ser juiz é um acréscimo de responsabilidade e não um acréscimo de poder»

Juiz Conselheiro Dr. João Pires da Rosa
Intervenção no Jantar do FPJI, Hotel Mundial, 12-02-2011

De como se nasce e se vive Juiz!

João Pires da Rosa
Juiz Conselheiro


"Se quisesse começar pelo princípio seguramente regressaria aos meus treze/catorze anos e ao Parque da cidade, em Aveiro, ao ringue do Parque e às intermináveis tardes de basquetebol. Se a dúvida se instalava - foi ou não foi falta? quem pôs a bola fora? - invariavelmente a pergunta sempre me era dirigida - há falta ou não há falta? de quem é a bola?

Por quê eu - não percebia bem - por quê eu chamado a decidir? Mas decidia ... e o jogo continuava sem mais incidentes.

Foi aqui que tudo começou.

E desde logo (pres)senti duas coisas que só bastante mais tarde percebi quais fossem, duas ideias-chave que sempre me guiaram ao longo de quarenta anos de profissão e que penso serem essenciais ao assumir da condição de Juiz.

A primeira é a de que tudo é relativo, mesmo a Justiça, mesmo a própria ideia de Justiça. O que importa é "que o jogo continue" ainda que a nova ordem imposta pela aplicação da regra não seja no caso a tradução mais justa da Justiça.

E que é preciso continuar a procurá-la, e procurá-la, e procurá-la, e procurá-la sempre, todavia também com a certeza de que na Justiça, como no mais, o Absoluto não existe. Ou se existe, ele é apenas e só essa "procura".

Essa procura insaciável é uma exigência a que se não pode renunciar mas cujos resultados, sem dramatismos ou receios espúrios, há que aceitar. E que - estou convicto - serão aceites se se convencem os seus destinatários da genuinidade da busca e do rigor e profissionalismo que a conduziram.

Se nem sempre é possível ou conseguido "pôr o mundo nos eixos" - até porque o mundo, a vida, tem tantas facetas e está tanto em tão contínua mutação - é preciso estar continuamente desperto para as "verdades" dos outros e para as novas cambiantes que surjam, de modo a que, no momento seguinte, se retome uma nova capacidade para caminhar os caminhos da Justiça.

Folheio o Público de 5ª feira passada entrevistando Sofia Gubaidulina e anoto que esta grande compositora russa, aos oitenta anos pela primeira vez em Lisboa, «vê a arte como aproximação ao Absoluto e, como nem tudo se pode fixar numa partitura, defende a espontaneidade do intérprete» e que - na sua própria expressão - «a vida reduz o homem a tantas peças que não conheço outra missão mais séria do que ajudar através da música a reconstruir a sua integridade espiritual».

É isto, é isto também para o direito e para a função de julgar, é este o cerne da condição de Juiz, ontem, hoje e amanhã. Seguramente amanhã com mais dificuldade do que hoje, hoje com mais dificuldade do que ontem, porque - já se disse - todo o mundo é composto de mudança e o ritmo da mudança é hoje muito mais intenso do que ontem, e será amanhã ainda mais rápido do que hoje.

Uma segunda coisa que desde logo, nos velhos tempos do Parque, aprendi foi a dimensão da autoridade. Não do lado da sua imposição (como poderia eu, o mais frágil fisicamente, impor fosse o que fosse!), mas do lado da sua aceitação. Todos aceitavam que fosse eu a decidir e, aceitando-o, aceitaram alguns erros seguramente cometidos todavia com a certeza certa de que sempre procurava acertar.

Era preciso aceitar que a arbitragem fosse feita por um igual, embora com alguns erros, porque acreditavam na "procura" de que acima falei e só esta garantia que o jogo continuasse.

Então talvez seja necessária uma pequena correcção temporal - não foi nos meus treze/catorze anos, mas talvez um pouco mais tarde, andaria eu já no 6º ano do Liceu quando descobri o meu caminho.

Porque parte dessa autoridade - estou convencido - resultava da minha opção pela então alínea E do 6º ano, a alínea que dava acesso ao curso de Direito.

De algum modo, no reverso, era a vida, o jogo da vida, a aceitar que era necessária uma certa regulação e que ao direito, aos profissionais do direito, essa regulação competia - o conhecimento das leis e o gosto e o apego pela sua aplicação eram a garantia de uma regulação aceitável por todos para que o "jogo" pudesse continuar.

~~

Claro que, aceitando a regulação, não podem aceitar os "jogadores" que essa regulação se divorcie da vida e das suas mil faces, se reconduza a uma leitura estratificada da "estratificação" feita na expressão verbal da lei no momento da sua publicação. É preciso não esquecer que é da "vida" que se trata, é do jogo e dos jogadores que se trata, e que é em cada momento temporal que têm que ser lidos e entendidos, e aplicados, os comandos legais desejados e recolhidos na expressão temporal de uma verbalização marcada no tempo.

E então há um segundo momento marcante no meu caminho para a Magistratura - o da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e do tempo de perceber que sempre a minha prestação foi apreciada mais elogiosamente quando fui capaz de olhar para o Direito não como se fosse um "bezerro de ouro" que tudo resolvesse e dirigisse e ao qual tudo (toda a "vida") tivesse de submeter-se, mas como um instrumento para pôr ao serviço da "vida", quando fui capaz de extrair do direito os instrumentos necessários para a regulação justa de uma vida vivida, quando fui capaz de transpor para a vida em movimento os valores e princípios recolhidos na expressão verbal do universo legislativo a aplicar.

Vale a pena introduzir aqui uma citação.

E às vezes as citações vêm de onde menos se espera. Desta vez de Miguel Sousa Tavares, no Quase Romance "No Teu Deserto", a págs.51.

Ele, o autor, «estava num fim do mundo, junto ao Rio Guadiana, num sítio tão vazio quanto o deserto lá em baixo, no Alentejo ... | E | devia haver qualquer coisa na forma como | ...| olhava aquela paisagem | ...| que fez com que o alentejano que estava | com ele |, e que antes tinha sido pastor naqueles vales, comentasse:

- A terra pertence ao dono, mas a paisagem a quem a sabe olhar».

Também o direito é assim.

Hoje, mais que nunca, o direito é de quem sabe olhar a paisagem e não de quem se fica apenas pela terra.

O difícil é que, para olhar bem a paisagem, é preciso ser dono da terra.

E isso, ser dono da terra, dá muito trabalho e exige muito esforço e atenção. Deu-me muito trabalho naquele tempo, dá-nos muito trabalho hoje, dá-nos cada vez mais trabalho.

Mas só pode ser Juiz quem, sem dono da terra, souber olhar a paisagem. Souber - e puder. Mas falaremos disso mais adiante.

~~

Um terceiro momento marcou o meu caminho.

E essa foi uma lição que recebi em casa.

Eu conto:

a minha "carreira" como jogador de basquetebol que fui, foi (disciplinarmente, claro) irrepreensível - sem qualquer castigo.

Já o mesmo não posso dizer da minha fugaz passagem pela "carreira" de treinador.

Quando acabei o meu curso de Direito fui colocado como Ministério Público na comarca de Amarante, em 10 de Dezembro de 1970, onde isso já vai!

Por isso, deixei de jogar, com muita pena minha.

Um qualquer fim de semana, todavia, substituí o treinador de uma equipa de juvenis que foi jogar à Figueira da Foz contra a Naval 1º de Maio na sede do Clube, no primeiro andar de uma das avenidas da cidade.

O jogo foi arbitrado por um tal Tomás (suponho que assim se chamava), de Coimbra, de quem nós, no Galitos, não gostávamos.

Findo o jogo, abeirei-me dele e disse-lhe textualmente - o senhor árbitro não procurou ser honesto.

Não é forma de um treinador se dirigir a um árbitro. É uma forma injuriosa e até, o que não é menos grave, pouco corajosa.

E o árbitro ameaçou que me prendia.

Então, inchado do orgulho balofo do meu recente cartão de Delegado do Procurador da República, respondi: aqui se alguém prende alguém sou eu.

E ficámos por aqui.

De regresso à casa, à mesa do almoço, vaidoso, contei a estória.

E minha Mãe disse-me textualmente: pensei que esse cartão te pudesse servir em caso de teres necessidade de prender alguém; agora para evitares seres preso ...

O balão da vaidade esvaziou-se por completo e eu aprendi para uma vida inteira que ser juiz é um acréscimo de responsabilidade e não um acréscimo de poder.

~~

Gostei de falar nisto porque são pequenas ideias básicas que, todavia, para mim, constituem grandes princípios que sempre regeram o meu exercício da judicatura.

Mas a verdade é que tudo isto, pouco ou muito, foi sendo testado ao longo do tempo e das circunstâncias concretas do tempo.

Quando cheguei a Amarante em Dezembro de 1970 eu era o jovem Delegado imberbe que chegava, mas que toda a Vila sabia já que ia chegar.

Foi fácil identificar-me - deve ser aquele Senhor, porque ainda há pouco o vi na papelaria a comprar postais ilustrados, respondeu uma das professoras à mais tímida das colegas da mesa grande do Hotel Silva, onde me alojei (e onde os professores estavam alojados) até estar limpa a linda Casa de Magistrados, geminada com a do Sr. Dr. Juiz.

E logo nessa noite, quando me acerquei da bilheteira do cinema, a funcionária me disse - Sr. Dr. Delegado, tem aqui o melhor bilhete para ver o filme. Subi as escadas e deparei-me espectador no primeiro balcão - solitário, único!

Nesse tempo,

um tempo em que o acesso das mulheres às magistraturas era ainda proibido, mesmo em regime de substituição legal (e por isso, Delegado ainda, trabalhei em Benavente com um Juiz Presidente da Câmara, agricultor de profissão, apenas porque a Conservadora do Registo Predial era mulher!),

chegava às comarcas ou o jovem Delegado (solteiro ou casado de fresco) ou sua Exa o Sr. Dr. Juiz, este acompanhado da "esposa do Sr. Dr. Juiz", dona de casa exemplar (tantas vezes imaginada como altamente influente!), e os meninos, e todos se instalavam nas Casas de Magistrados, para ficarem. E veja-se como Amarante era a apenas 60 Kms do Porto e como eu próprio fazia três horas de viagem para chegar à 2ª feira ou regressar a casa ao sábado, e como os professores, todos do Porto, permaneciam na Vila durante toda a semana!

Neste tempo,

num tempo ainda de repressão salazarista, com uma magistratura maioritariamente de origem rural, tantas vezes recuperada dos seminários para aonde fugira ao destino do campo, em que o exercício profissional era visto (e sentido) quase como um sacerdócio (com frequência as mulheres da terra se benziam quando eram levadas à presença do Sr. Dr. Juiz),

era fácil o exercício de autoridade de que falei, tantas vezes identificado com a máquina repressiva do Estado, outras vezes ancorado na mitificação que a profissão e a diária vivência dos Magistrados (que só um com o outro conviviam, quando conviviam, e conversavam com um outro advogado, sempre em locais públicos) lhes conferia.

Hoje não é assim. Essa figura de Magistrado não existe.

A origem social da Magistratura é claramente urbana, há homens e mulheres Magistrados (mais mulheres que homens), homens e mulheres comuns, que vão e vêm diariamente, que se vestem e convivem como os homens e mulheres do seu tempo, que trabalham e casam com quem trabalha, que se casam e descasam, e namoram ou vivem em união de facto, que se cruzam na rua ou nos cafés com as pessoas comuns que são o universo dos destinatários da Justiça.

Ora, assim sendo, a autoridade, sobretudo a aceitação da autoridade, é mais difícil, tem que ser conquistada dia a dia, o Juiz precisa de conquistar o "auditório" a quem se dirige, convencendo-o da bondade das suas decisões, do equilíbrio e sensatez das suas sentenças.

E o primeiro passo dessa conquista é ainda fora da sala de audiências, na rua, impondo-se pela sua própria personalidade e pela integridade e lhaneza da sua conduta.

E isto é tanto mais difícil quanto é certo que, como diz o provérbio popular, "para baixo todos os santos ajudam".

Se o Juiz tem que se impor pelo seu comportamento e elegância, até por um estatuto económico que lhe permita estar acima de quaisquer contrariedades materiais, a verdade é que parece que há um prazer destrutivo em desconstruir a imagem dos juízes, das magistraturas.

Numa época, como a nossa,

de esvaziamento cultural, em que os valores e as referências se perdem em cada esquina e em que parece dominar uma impenitente abstracção individualista, com cada qual a pensar o bem e o mal apenas e só por aquilo que julga ser o seu bem ou o seu mal,

qualquer referência desprimorosa é instantaneamente potenciada por órgão de comunicação social (e pode perguntar-se, com João Caupers, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa "Que raio se ensina nos cursos de comunicação e jornalismo?) sempre disponível para fazer recair sobre os tribunais e a Justiça os males que muitas vezes lhes não são assacáveis, mas sempre sempre lhe são imputados.

E o mal é que estas vozes que diminuem ou amesquinham os tribunais e as Magistraturas se esquecem sempre de lembrar (e de se perguntar) o que fica quando a Justiça que temos for definitivamente "enterrada".

Quem fará então a Justiça? As televisões, os programas das manhãs ou os directos nas rádios? Os comentadores anónimos na net? Ou essas mesmas vozes que engrossam ou comandam o coro dos ataques e que tantas vezes são responsáveis pelo estado a que a justiça chegou?

E, todavia, temos que conviver com isto que é a espuma dos dias. Temos que saber lidar com tudo isto. E mais, fazê-lo com o distanciamento, a correcção, e até a tolerância, necessários para que o prestígio da Magistratura regresse à tona de água.

E teremos feito isto sempre? Ou tê-lo-emos feito sempre do modo mais conveniente ou conseguido?

Creio que não! Creio que não, nem sempre.

Há manifestamente lutas que - em meu entender, claro - não tiveram o efeito desejado. Muitas vezes até por culpas que não são nossas.

Quando lutámos, como me lembro que lutámos, para que ao Juiz ficasse apenas a função de julgar, libertando-o das tarefas de direcção e administração dos tribunais, não tivemos mais tarde que lutar porque nos fosse (re)atribuído o poder disciplinar, recuperando uma hierarquia sem a qual não é possível um bom funcionamento das instituições (embora possamos dizer que nunca foi verdadeiramente criada a figura ideada do administrador judiciário)?

Quando achámos que a presença de um Juiz Corregedor num tribunal Colectivo "desigualava" a composição de um tribunal em que todos os membros deviam ser iguais, não conduzimos a uma desvalorização do próprio Tribunal Colectivo, igualmente desvalorizado quando nós próprios," asas", respondíamos ao excesso de serviço aproveitando para despachar outros processos enquanto os julgamentos decorriam (vício de que - aqui o declaro para todos os legais efeitos - não sofri)?

E quando isso conduziu ao julgamento singular e à penosa audição das cassetes nas Relações, soubemos conduzir as audiências por forma a conseguir a limpidez e transparência das gravações e a possibilitar uma verdadeira e profícua reapreciação do facto?

E isso mesmo, o quase uniforme julgamento singular, a falta de rotina da decisão conjunta, não fechou cada um de nós sobre si próprio, julgando-se a "única" forma de pensar, com tudo o que há de errado no aparecimento de seres que se julgam únicos, aceitando facilmente o "endeusamento" que a espuma dos dias por interesse transitório lhes assaca?

E quando hoje se verificam em alguns tribunais tensões insuportáveis entre os vários operadores judiciários não teremos nós também, Magistrados Judiciais, as nossas responsabilidades?

E o que pensa sobre tudo isto o Centro de Estudos Judiciários, sobretudo num momento em que a Magistratura do Mº Pº já não é vestibular da Judicial e que mais de 60% dos magistrados de 1ª instância são mulheres?

Que sabe o CEJ sobre o que significou, em termos de orientação jurisprudencial, a entrada das mulheres nas Magistraturas? Houve mudanças na decisão concreta? E de que tipos? E em que áreas? Estão as mulheres mais vocacionadas para certas áreas, por assim dizer femininas, como a família e menores e serão, por exemplo, mais duras em matéria de crime sexual, ou isto é um estereotipo (como penso que é) e ao contrário serão mais brandas nesta área da criminalidade e menos flexíveis e criativas em matérias como a regulação do poder paternal?

E por que forma, e com que sentido, se vêm escolhendo os Juízes formadores para que os novos Magistrados possam responder com qualidade e sentido de equilíbrio ao aumento significativo de Advogados em todas as comarcas, sobretudo quando a intervenção do respectivo Bastonário tantas vezes potencia eventuais conflitos?

O que significou, em termos de Justiça e da Imagem dela, a alteração do paradigma do meu tempo - um velho Juiz e um jovem e inexperiente Delegado, na aparência dele dependente - para um novo paradigma - o jovem Juiz e o velho Procurador-Adjunto - ou três ou quatro Magistrados ou Magistradas, Judiciais e do MºPº, saídos todos da mesmo Curso do CEJ, vivendo todos no mesmo apartamento, o único que conseguiram arranjar para todos, quando chegaram à comarca sem casa?

Que se perdeu, se é que se perdeu, com o paralelismo na formação inicial das magistraturas quando seguramente se ganha com uma magistratura do Mº Pº mais madura e segura de si, que seja uma efectiva garantia do respeito pela liberdade e segurança dos cidadãos, sobretudo se se aproximar mais do Juiz e menos do polícia?

Tantos estudos se fazem e não há qualquer estudo sobre estas questões (nem mesmo do Observatório da Justiça, ao que julgo)! Ao menos sobre a questão da mulher na Magistratura - e são mulheres as duas últimas Directoras do CEJ!

~~

Pois é. Temos que olhar para dentro de nós próprios e perguntar-nos também o que temos feito pelo prestígio da Magistratura que somos.

Até nas coisas mais simples. Na forma como recebemos as pessoas, como as olhamos, como as tratamos.

Não é possível aceitar que alguém nos diga que foi julgado sem que, num qualquer momento, tenha sido olhado olhos nos olhos pelo Juiz que o julgou e condenou; não é possível aceitar um tratamento pessoal de testemunhas e réus diferente daquele que queremos para nós próprios; não é possível aceitar que se convoque e desconvoque alguém, que se coaja alguém a comparecer e a voltar a comparecer em tribunal ao sabor de um qualquer impulso pessoal ou de uma certa maneira de organizar a agenda que não tenha em conta que quem se desloca é também alguém com obrigações e responsabilidades; não é possível aceitar que se notifique alguém do que quer que seja sem que se assegure que a notificação é passível de ser lida e entendida pelo notificando e se não limita a um arrazoada de disposições legais que só os iniciados podem compreender, se é que podem; não é possível aceitar que o convocado que se deslocou seja desconvocado e convocado de novo sem uma palavra institucional sobre as razões da desconvocação.

São pormenores do funcionamento dos tribunais?

Não são. Por aqui passa também muito do prestígio das Magistraturas e é necessário estarmos atentos a isso. O primeiro factor de respeito pelos tribunais é o respeito dos tribunais pelas pessoas, ainda que no momento em que se lhes não dá razão ou se lhes impõe uma qualquer pena, ainda que grave.

~~

É este respeito e esta confiança que se exige aos Magistrados, hoje mais do que nunca, e que exige deles um combate permanente pela criação das condições que lhes permitam exercer a judicatura no integral respeito dos direitos dos cidadãos.

Desde logo,

a luta por um estatuto sócio-profissional e económico que seja a garantia da imparcialidade e independência, e da tranquilidade, sem as quais nenhuma Justiça se prestigiará a si própria ou será aceite pelos seus destinatários. E isto é tanto mais difícil quanto é certo que é exactamente em sentido inverso que o poder político parece querer agir, esquecendo que a fragilização do estatuto económico conduz inevitavelmente, como já se viu noutras profissões (vejam-se os Professores) a uma desvalorização do estatuto social e profissional.

Depois, uma luta constante pela criação das condições materiais do exercício profissional, pela dignidade das instalações nas quais se trabalha e onde se recebem as pessoas, pelos meios materiais e humanos que permitam chegar rapidamente às decisões e ao cumprimento delas. E ao cumprimento delas, repito.

E ainda uma luta para que os estrangulamentos que existam se não ultrapassem subtraindo aos tribunais aquilo que só ao poder judicial deve caber - sempre, mais tarde ou mais cedo, é no poder judicial que os cidadãos fazem repousar o juízo de Justiça por que anseiam

Depois também uma luta constante pelo esclarecimento e informação, através de uma apresentação clara e transparente, e simples e perceptível, das razões e da etiologia de cada entrave ou de cada oposição ao exercício da Justiça.

Ainda e finalmente uma luta infrene para que uma contínua e descuidada produção legislativa não subverta, na verbalização do comando legal surgido tantas vezes aos repelões ou sem a necessária reflexão, os valores cuja afirmação convenha ao devir social.

Leis ambíguas e imprecisas são uma subversão que sempre se vira contra os tribunais e os Juízes que, por respeito à Constituição, as têm que aplicar, e nunca contra os pais/escritores que as produziram.

~~

Este é o desafio lançado à Magistratura do nosso tempo e do tempo que aí vem.

Um desafio que é preciso enfrentar com coragem e determinação, uma luta tanto mais difícil quanto é travada as mais das vezes num meio aonde os Juízes não podem movimentar-se em pé de igualdade com os mais intervenientes, exactamente também porque o prestígio da Magistratura e a própria ideia de Justiça lhes impõem um dever de reserva que não podem desrespeitar sob pena de uma exposição que tem um efeito rigorosamente inverso.

Verdadeiramente livre na sua exposição o Juiz só o é quando constrói as suas decisões.

E deve fazê-lo, então, com total transparência e clareza, e simplicidade, por forma a que cada decisão ou sentença se explique por si própria. Fora dela não há mais explicações, qualquer explicação é um desajuste e uma (des)explicação.

As decisões judiciais valem por si próprias e apenas pelo que está dentro delas próprias.

E são elas próprias que têm que conquistar o respeito e a aceitação sem a qual - voltamos ao princípio - não terão a autoridade, a auctoritas, que é pressuposto do poder judicial e do seu prestígio.

É por isso que é uma exigência profissional a luta pelas condições que garantam e dignifiquem o exercício da função judicial.

Só assim se pode afirmar o direito, só nessas condições haverá quem possa olhar a paisagem e se não fique por ser apenas dono da terra.

E é neste sentido que termino dizendo, com disse a nossa jovem Juíza Teresa Garcia a propósito dos protestos em curso dos nossos Colegas franceses, que estou contra qualquer "anestesia" da magistratura e que, seja de um modo espontâneo ou organizado, ou mesmo de um modo solitário (se bem que sempre dentro de uma linha de presença e correcção que nos não (des)identifique da nossa própria condição), esta é um luta de todos nós e tem que ser vencida, em nome do prestígio e da independência do poder judicial, garantia primeira de um estado de direito como o nosso.

João Pires da Rosa
Forum Permanente Justiça Independente
Hotel Mundial, Lisboa, 11-Fev-2011."

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