"Neste início de ano deparam-se ao Ministério Público vários desafios relevantes, importando definir objectivos, equacionar metas e concretizar resultados a obter.
Há, como prioridade, que restaurar e reforçar a credibilidade da Justiça; ganhar a confiança dos cidadãos na realização dessa mesma Justiça; obter resultados com um mínimo de alarme na sociedade; contribuir para uma maior paz social.
Tudo isto encarado na perspectiva do Ministério Público.
Sendo a independência dos tribunais uma exigência do Estado de Direito e sendo a autonomia do Ministério Público necessária para que exista essa independência, impõe-se que na vivência do dia-a-dia, na prática, se garanta essa independência e essa autonomia, com respeito mútuo das várias esferas do poder.
O Estatuto dos Magistrados do Ministério Público impõe limitações várias que vinculam os magistrados, criam incompatibilidades e reduzem os seus direitos. A contrapartida deve ser o respeito institucional que o exercício do cargo em si mesmo transporta, sem que isso signifique, obviamente, a ausência de críticas ou a possibilidade de remodelar situações.
Tornados inquestionáveis a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e o respeito institucional, deverão os esforços dos intervenientes no processo judiciário virar-se para a clarificação da justiça e para a cooperação de vontades, pondo fim a querelas que aqueles a quem a justiça serve têm, muitas vezes, dificuldade em perceber.
Assente esta base estrutural, haverá que analisar as causas da chamada crise da Justiça que penso se pode redutoramente classificar como crise da falta de confiança na Justiça.
No que ao Procurador-Geral compete impor-se-á definir, em primeiro lugar, que Ministério Público se pretende para os tempos futuros.
Não servirá certamente a Justiça de hoje um Ministério Público elitista, fechado em si mesmo, seleccionando causas, como não a servirá um Ministério Público populista, erguendo como suas todas as bandeiras de causas que a opinião pública venha a criar, nem um Ministério Público burocratizado, excessivamente formalista, virado para o interior do sistema.
Terá que existir um Ministério Público confiante, personalizado, seguro de si, que não se isole institucionalmente, nem se afaste daqueles a quem serve, que é o povo português, e daqueles com quem deve cooperar.
Um Ministério Público sem receios infundados de perda de autonomia face ao poder político, e sem receio de perda de prestígio, deve dialogar com o poder executivo, com o poder legislativo e com todos os intervenientes no poder judiciário, sem esquecer que no centro está o cidadão.
O Procurador-Geral tem repetidamente afirmado que um Ministério Público isolado e distante não é aceite hoje pela comunidade a quem serve.
Comunidade e sociedade que sofreram uma profunda modificação, que tem que ser aceite e estudada.
A rápida evolução da vida económica trouxe uma dificuldade acrescida para o legislador. As leis não acompanham a dinâmica dos tempos actuais, surgindo depois da mudança e, às vezes, irremediavelmente, atrasadas.
O derrubar de fronteiras, o livre trânsito de pessoas e capitais, a complexidade da vida social, a queda de alguns padrões, trouxeram um aumento da litigância e um crescimento da criminalidade.
Aumento e diversificação que incluem o cibercrime, os crimes ambientais, os interesses difusos, o crime internacional, o branqueamento de capitais, os chamados crimes de colarinho branco, novas questões relacionadas com o urbanismo e com a saúde pública e toda uma gama variada de criminalidade ligada às novas tecnologias.
A essa nova criminalidade ou à antiga, feita agora de forma mais sofisticada, é necessário responder com igual aumento de meios técnicos. Não é possível hoje aos magistrados reunir todos os conhecimentos especializados que permitam, sem mais, investigar alguns dos crimes referidos. São cada vez mais necessários os peritos, os especialistas, a tecnologia ao serviço da Justiça.
Sirva de exemplo o planeamento e ordenação do território ou no urbanismo as questões ligadas à engenharia civil ou industrial. Não será possível investigar de forma eficaz sem a colaboração de engenheiros e arquitectos.
É preciso diversificar, aumentar, renovar os chamados núcleos de assessoria técnica (NAT), que neste momento não têm nem podem ter respostas adequadas e necessárias.
Mas não só nestes aspectos se avolumam as dificuldades de investigação. A criminalidade violenta dos bairros degradados está à porta, a exclusão social existe e não pode ser ignorada, já que gera e continuará a gerar grande conflitualidade, confrontos e acções que o ordenamento jurídico não permite.
É fundamental acabar com o sentimento de impunidade que ainda existe em Portugal. Ideia que assenta na convicção errada de que a Justiça não é igual para todos. E que assenta também na morosidade, na desarticulação entre os vários operadores do sistema da Justiça, nas prescrições, na falta de eficácia e nos mega-processos que muitas vezes conduzem a mega-absolvições.
Falamos da área penal por ser aí que o Ministério Público tem maior autoridade e ser esse o barómetro utilizado pelo público para aferir da eficácia desta magistratura.
Mas, como é sabido, o Ministério Público, a quem cumpre defender a legalidade democrática, tem intervenção a vários níveis no dia-a-dia da sociedade.
Na abertura do ano judicial importa referir o estado da Justiça em concreto.
A avaliar pelos títulos dos jornais, pelas notícias divulgadas pelos meios audio-visuais, o país estará todo a ser investigado e oscilarão os pilares do Estado Democrático.
Não é assim. Os números dos processos em que o Ministério Público teve intervenção em 2006 figurarão no relatório anual. Desde já se pode, contudo, afirmar que ao nível penal não existiu aumento de inquéritos, tendo, por outro lado, diminuído várias pendências.
Significa isto que não há qualquer razão de alarme social nem no que respeita ao crime em geral nem no que toca a qualquer crime em especial.
Já não será assim no campo da justiça civil, uma vez que uma situação económica não favorável e um processo executivo com muitos problemas têm feito aumentar algumas pendências processuais.
Perguntar-se-á porquê então o noticiar contínuo sobre a problemática da Justiça.
A um desinteresse dos media existente durante muitos anos, reforçado por uma censura rígida, sucedeu-se um grande aumento de visibilidade da Justiça, visibilidade essa para a qual os tribunais não estavam preparados nem vocacionados. A ideia-força da ineficácia da Justiça resulta também de um excessivo noticiar do acontecimento a que não corresponde depois um igual interesse pelo desfecho.
Os meios de comunicação procedem ao julgamento antes dos tribunais, sucedendo-se por vezes o julgamento dos próprios magistrados, que não têm por regra forma de contrapor a sua verdade.
Ao direito de informar e de ser informado contrapõe-se a independência da justiça, a salvaguarda do direito ao bom nome e outros direitos de personalidade. São, por isso, frequentes os conflitos entre direitos constitucionalmente protegidos.
Embora ninguém esteja acima da crítica e a justiça não deva ser sacralizada, importa definir onde começa e acaba um e outro dos direitos em conflito, estabelecendo-se os respectivos limites.
Urge cultivar uma cultura judiciária que passe por uma maior discrição no que respeita à divulgação dos factos e das diligências, que só por si causam alarme social e podem ferir irremediavelmente pessoas e instituições. Cultura que a todos os intervenientes deve tocar.
Têm-se revelado pouco eficazes os meios para obter essa discrição, como se têm revelado também pouco seguras as medidas para manter o segredo de justiça que é suposto defender a investigação e o bom nome dos investigados.
Muitas interrogações se podem colocar acerca do segredo de justiça. Tratando-se de uma cerimónia protocolar, permitam-me um só exemplo. O Procurador-Geral foi ouvido na Assembleia da República sobre Mediação e a Reforma do Código Penal. Apresentou várias sugestões de alteração que, aparentemente, foram bem recebidas pelos partidos. A título de mero comentário foi referido que não havia receitas mágicas para evitar a violação do segredo de justiça.
Foi só este pormenor que mereceu a atenção da imprensa e logo alguns jornalistas se interrogaram sobre o que se poderia esperar face a essa confissão de impossibilidade.
É óbvio que sempre existirá a violação do segredo de justiça, como sempre existirá, por exemplo, o homicídio, seja qual for a punição para tal crime.
Tendo, contudo, passados dias, existido uma violação do segredo de justiça, uma actuação rápida e eficiente levou (segundo os dados que me foram fornecidos) a que se apurasse a origem da violação do segredo de justiça. Logo alguns comentadores focaram a atenção numa outra vertente e passaram a perguntar se afinal não existia liberdade de imprensa.
Este simples exemplo, que não pretende conter qualquer censura, mostra as diferentes perspectivas que são sempre possíveis sobre uma problemática que está longe de ser pacífica.
O vento pacificador que sopra sobre a causa da Justiça, as reformas de Diplomas fundamentais que estão em curso, a anunciada simplificação processual, a intervenção directa dos cidadãos em determinado tipo de litígios, a cooperação entre os vários intervenientes judiciários e acima de tudo a vontade de todos em melhorar a Justiça, faz-me estar esperançosamente optimista.
Senhor Presidente da República
Excelências
Antes de terminar quero manifestar ao Senhor Presidente da República a satisfação pela presença prestigiante de Sua Excelência. E manifestar também o meu apreço pelo interesse que tenho sempre visto por parte do Presidente da República pela causa da Justiça. Desde o dia em que tive a honra de ser convidado para o cargo de Procurador-Geral e até hoje, todas as intervenções foram no sentido de se obter uma melhor Justiça para o Povo Português. Não posso também deixar de referir quão importante foi a palavra do Presidente da República para quebrar uma crispação que chegou a existir no que respeita à Justiça.
Igualmente me regozijo com a presença de Sua Excelência o Presidente da Assembleia da República, recordando as várias iniciativas que essa Assembleia tem tido nos últimos tempos no campo da justiça.
Uma palavra também de muito apreço para o Senhor Ministro da Justiça, jurista ilustre, de quem tenho tido apoio sempre que solicitado e uma atenção inteligente e esclarecida sobre os vários problemas que vão surgindo.
Permitam-me que termine recordando que é esta a primeira vez que uso da palavra neste Tribunal na qualidade de Procurador-Geral, o que comporta uma certa emoção, já que aqui fui durante mais de oito anos, orgulhosamente, Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Finalizo dirigindo um cumprimento amigo aos Senhores Magistrados Judiciais e do Ministério Público, especialmente àqueles com quem durante anos trabalhei nesta casa, sendo que com alguns deles já tinha defendido a causa da Justiça muitos anos antes.
Um Bom Ano para todos.
O Procurador-Geral da República
Fernando José Matos Pinto Monteiro"
Fonte: PGR
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