sábado, janeiro 28, 2006

Intervenção de Sua Exa. o Conselheiro Procurador-Geral da República, por ocasião da cerimónia de abertura do Ano Judicial


Supremo Tribunal de Justiça
26 de Janeiro

Estamos hoje confrontados, Senhor Presidente da República, com o facto de ser esta a última vez no âmbito do presente mandato que Vossa Excelência participa, em tal qualidade, na cerimónia de abertura do ano judicial.

Não é possível deixar passar a ocasião sem lhe ser prestada uma homenagem justíssima, e sem lhe ser manifestado um agradecimento muito sincero, por tudo quanto fez neste seu duplo mandato pela melhoria da nossa justiça.

Importa assim voltar a dizer, que o mundo dos tribunais em geral e mais concretamente quantos aí trabalham, lhe devem uma atenção constante, um empenho sem tréguas e intervenções frequentes. No que toca ao funcionamento dos tribunais, ao que lá se faz, ou não faz mas devia ser feito. Sobretudo, no que toca às necessidades das pessoas que têm que recorrer ao serviço da justiça.

O cidadão interveniente e o jurista que Vossa Excelência também é, sempre partilharam connosco críticas e desencantos, propostas e esperanças justificadas. Bem haja Senhor Presidente pelo que nos deu, e, estou certo, vai continuar a dar, para que se alcance melhor justiça, e justiça para todos, no nosso país.

Caros colegas, Senhoras e Senhores:


Sem ser caso único a nível europeu, a justiça em Portugal não tem a desejada rapidez e nem sempre é de fácil acesso, mostra-se demasiado complexa e aparece em regra, à maioria dos cidadãos, como incompreensível.

Estes reparos, cá como noutros países, fazem já parte de um discurso recorrente. E, quanto ás disfunções, têm elas sido reportadas a aspectos de método, são os processos e procedimentos arcaicos, a questões logísticas, é a falta de meios, meios que faltam e meios em falta, são os problemas de organização e de gestão do sistema.

Multiplicaram-se os colóquios os congressos e os debates. Publicaram-se quilómetros de escrita. Geraram-se conflitos mas também se congregaram esforços.

É tempo de se olhar o futuro com uma postura nova. Esquecendo ressentimentos e crispações passemos congregados á acção, porque sem uma mudança profunda e rápida na eficácia e qualidade da justiça, dificilmente sairemos já, da crise em que a instituição se viu submergida.
Deixaremos saudavelmente de olhar uns para os outros e apliquemo-nos, no futuro próximo, a olhar todos, só na mesma direcção.


E adoptemos uma atitude que se quer nova.

Gostaria que essa atitude fosse inspirada por uma ideia de concórdia, que só pode assentar no respeito mútuo, e se não confunde com a simples concordância ou acordo. Este, é a partilha das mesmas opiniões e posições, a concórdia compatibiliza-se com a diferença. Mas a concórdia não é possível sem uma atitude inteligente, e é isso que no fundo, e em definitivo, se nos pede. Porque a inteligência, aqui, é a abertura a uma realidade em crise, impõe-se a descoberta e aceitação de toda essa realidade. Truncamos a realidade, e portanto a verdade, quando nos fechamos à realidade do outro, dos outros órgãos, dos outros poderes. À importância do seu papel e dos interesses que prosseguem.

Quando nos blindamos na nossa subjectividade, no nosso mandato, em fins imediatos ou interesses particulares, que queremos ver alcançados a todo o custo, corremos o perigo de deixar a postura inteligente que leva à concórdia e se preocupa em compreender, e resvalamos para a esperteza geradora de conflitos. A esperteza não se preocupa com compreender uma realidade. Adultera-a, manipula-a e utiliza-a egoisticamente. Por outras palavras, estraga tudo.

No ponto a que chegamos estamos condenados a ser inteligentes

Senhor Presidente da República, Excelências:

Ao longo de cinco anos, tanto aqui, como noutras oportunidades, procurei adiantar posições sobre vários problemas que atingem o funcionamento do nosso aparelho da justiça, para melhoria do sistema e portanto do serviço da justiça.

Nem sempre escutadas, talvez que esses ideias, possam ainda vir a ser usadas no futuro, e por isso é que um discurso situado no passado poderá ser modesto contributo, se assim for entendido, para as mudanças que importa levar a cabo.

Penso, fundamentalmente, na magistratura a que pertenço.

Na reflexão que fui fazendo procurei debruçar-me sobretudo sobre a justiça penal que temos e gostaríamos de ter, o Ministério Público que queremos para Portugal, o que deve ser o Procurador-Geral da nossa República.

Comecemos então pelo âmbito penal, e centrados na investigação.

Apesar de, desde sempre, o elenco das competências conferidas ao Ministério Público se iniciar com a da representação do Estado, a verdade é que, aos olhos da opinião pública, a marca mais impressiva desta magistratura deriva da sua intervenção na justiça penal.


O papel fulcral que aí assume o Ministério Público ao dirigir o inquérito, consabidamente uma das fase do processo penal, é também desempenhado com o auxílio dos órgãos de polícia criminal que actuam sob a sua directa orientação e na sua dependência funcional. A ponto de, já o disse, o trabalho dos OPC só servir para o uso que dele fizer o MºPº e a ponto de o MºPº não poder atingir como deve os seus objectivos sem os OPC.

Mas a responsabilização funcional da polícia perante a autoridade judiciária, poderia até ser considerada dispensável, não fora uma exigência constitucional com raízes históricas conhecidas, e uma justificação assente na protecção dos direitos individuais, a qual ganha aliás, rapidamente terreno, em termos de direito comparado. Na verdade, o controle da actividade investigatória das polícias por parte de uma autoridade judiciária, nomeadamente do Ministério Público, é o mecanismo que a maioria dos Estados democráticos considera adequado, a assegurar os equilíbrios necessários à garantia da democraticidade, das instituições que integram o sistema de justiça penal.

Entre MºPº e OPC estabeleceu-se assim uma parceria, no seio da qual se tem que conviver e conviver bem. O que exige, entre o mais, uma definição muito clara dos papeis. A investigação criminal, como é sabido, não se esgota e não se confunde com a recolha no processo da prova identificada, mas comporta também recursos e técnicas que são geralmente relegadas para as práticas policiais.

É apenas neste domínio que se integra a autonomia técnica e táctica dos órgãos de polícia criminal, fundadas no pressuposto de que a investigação assenta em “legis artis” cujo domínio é apanágio das polícias de investigação.

Acresce que a perspectiva que do processo têm OPC e MºPº tem que ser diferente. Pelo menos no seguinte: enquanto que a acusação fundamentada é para os OPC o objectivo fundamental desde o momento em que se começou a investigar um crime, para o MºPº interessará desde o inicio, o resultado final, em julgamento.

Mas ambos, MºPº e OPC passarão em breve a ter outro vector importante de colaboração em sede de participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania.

Na actualidade, a política criminal deve entender-se como um sistema coerente, multisectorial, resultado de um planificação, orientada no sentido da contenção da criminalidade em parâmetros razoáveis. Não se esgotando, por conseguinte, na subespécie que é a definição de objectivos, prioridades e orientações em sede de investigação criminal e acção penal. Ainda assim, neste último segmento, a exigência constitucional da estruturação do processo penal em termos acusatórios, bem como a atribuição da titularidade da fase do inquérito ao Ministério Público, importam para esta magistratura o trabalho de direcção dos OPC, também na perspectiva de execução de uma certa política criminal.

Afigura-se-nos inquestionável que o sucesso do controle da criminalidade na vertente repressiva dependerá, em muito, senão integralmente, de uma complementaridade de meios e de interacção entre as duas entidades.

Mas a lógica de uma política criminal não se esgota só em índices de produtividade. Ela supõe, prima facie, uma lógica de justiça, é dizer, de igualdade face á lei de todos os cidadãos.

Sendo o exercício da acção penal orientado pelo princípio da legalidade, aquela exigência de igualdade implicará que, apesar de tudo, nos não possamos conformar com a existência de casos que, à partida, se saiba não virem a ser investigados com eficiência e num prazo razoável. Postura esta rodeada de dificuldades óbvias que urge ultrapassar.

De qualquer forma, a definição da política criminal não poderá residir apenas em instrumentos de carácter judiciário. Revela-se fundamental o conhecimento da realidade criminológica e sociológica sobre a qual se irá actuar, por forma a circunscrever os fenómenos mais relevantes e permitir a definição das formas mais idóneas de os abordar, inclusivamente, senão prevalentemente, fora dos tribunais.

Por outro lado, a criminalidade não se distribui de forma homogénea por todo o território nacional, o que aponta no sentido de especiais cuidados na racionalidade e afectação de meios, tendo em conta as diferenciações regionais.

Finalmente, cumpre referir que, num sistema onde a tónica é a da obrigatoriedade da acção penal, qualquer instrumento definidor de prioridades investigatórias deverá conter regras que previnam hipóteses de prescrição do procedimento por não promoção atempada, bem como a contemplação de prioridades inerentes à urgência de certos processos, relativos por exemplo a arguidos presos preventivamente.

Mas que Ministério Público queremos para Portugal?


A posição institucional do Ministério Público no quadro da organização de poderes do Estado, seja no seu relacionamento com o poder executivo e legislativo, seja com a magistratura judicial, é assunto que ciclicamente é trazido para a ordem do dia.

Ainda no ano passado e nesta mesma ocasião, fui forçado a abordar tal temática que, se por um lado nos remete para a análise dos modelos de Ministério Público estrangeiros, por outro lado alerta-nos para o peso da evolução histórica da magistratura em causa e da nossa identidade cultural. O MºPº português é um caso português, curiosamente avaliado de forma mais favorável no estrangeiro do que cá dentro.

Nunca esqueceremos assim que o nosso Ministério Público deve caracterizar-se como órgão de justiça, e não como corpo administrativo, e daí a sua abordagem no capítulo que a Constituição da República Portuguesa reserva aos “Tribunais”. Os seus agentes, considerados magistrados, devem obediência a um estatuto profissional e deontológico que os conforma com aquela qualidade, os afasta da Administração e os aproxima da judicatura. Magistratura com a qual se deve fomentar uma cultura de confiança, uma formação parcialmente comum e uma relação de permeabilidade entre si, dentro de condições limitadas.

A autonomia do Ministério Público relativamente ao poder político assenta, como sabemos, no auto-governo desta magistratura e na inexistência de interferências externas, designadamente no exercício da acção penal. Deste modo, e apenas deste, se assegura a meu ver uma melhor realização do Estado-de-Direito. Porque não chega ter juizes independentes. É preciso um MºPº que lhes possa levar, sem constrangimentos, tudo o que eles, juizes devem julgar ... com independência.

Referimo-nos anteriormente à área penal, a qual, pelo menos aos olhos do público em geral, é a que melhor contribui para identificar a magistratura do MºPº.


Não menosprezemos porém todas as suas outras competências, até porque há campos de actuação com imensa dignidade e valor comunitário que, hoje mais do que nunca, se abrem ao MºPº.

Escolho, por exemplo, as áreas da protecção de menores e da protecção dos chamados interesses difusos.

O sistema tutelar de crianças e jovens no seu conjunto, reformulado e em vigor desde o início de Janeiro de 2001, afigura-se-nos, do ponto de vista formal, bem estruturado, e corresponde aos padrões de exigência internacionais.


Há, no entanto, que melhorar a qualidade da intervenção e a sua eficácia, tanto ao nível judiciário como administrativo, especialmente no âmbito das Comissões de Protecção das Crianças e Jovens.

Temos sublinhado a importância das Comissões e voltamos a fazê-lo.

Entendemos que estas instituições não judiciárias, de base comunitária, têm uma acção dual que importa estimular e apoiar:

Funcionando na modalidade alargada têm potencialidades para desenvolver acções de pura prevenção das potenciais situações de perigo.

Perante as situações de perigo actual ou iminente, à comissão restrita compete a adopção de medidas de protecção céleres e adequadas, em razão da sua proximidade.

Reafirmamos, por isso, que as Comissões de Protecção são instituições idóneas e adequadas para responder às necessidades que neste campo se revelam.

O Ministério Público procura exercer a sua acção fiscalizadora nos termos da lei e tendo em conta as linhas orientadoras definidas através de directiva oportunamente emitida.

Continuaremos presentes e de facto empenhados nesta área de intervenção, porque dela depende decisivamente o nosso futuro e dos nossos filhos.

Um apontamento, de seguida, sobre a protecção de interesses difusos.

Estou a pensar, na intervenção do Ministério Público em tempo útil, requerendo a adopção de providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, face a situações que exigem intervenção rápida e resoluções judiciais eficazes. O que tudo reclama especiais exigências de preparação técnica mão propriamente jurídica. E tenho presentes áreas como a do planeamento e ordenamento do território, do ambiente e urbanismo, da saúde pública, mas também da engenharia civil ou industrial.


Não se mostrando de momento viável a criação de um gabinete de assessoria técnica susceptível de abarcar as várias matérias envolvidas, foi recentemente criado, na Procuradoria-Geral da República, um núcleo de apoio em matéria de defesa de interesses colectivos e difusos. A prioridade tem sido a constituição de bases de dados e documentais especializadas, incidindo sobre as áreas do ambiente, urbanismo, ordenamento do território, património cultural, saúde pública e defesa dos consumidores.

Mas não se esgotará aqui a actividade desse Núcleo, que se pretende venha a evoluir para um verdadeiro Gabinete de Apoio Técnico ao serviço dos magistrados do Mº Pº, mas não só.

Como último ponto, umas breves palavras sobre a figura do Procurador-Geral.

A solução constitucional vigente, em matéria de legitimação política do cargo de Procurador-Geral, deverá ser conjugada com a clara intenção constitucional de se garantir a autonomia do Ministério Público no seu todo, enquanto órgão composto por magistrados, dotados eles próprios de um grau elevado de liberdade de decisão individual, mas responsáveis e hierarquicamente organizados. Ou seja, formando um corpo único.


E será esta vertente colectiva da autonomia funcional do Ministério Público que postula e exige uma clara legitimação política, da entidade a quem cabe dirigir esta magistratura.

No caso do Procurador-Geral, está em causa a nomeação do titular de um cargo que, tendo embora uma vertente administrativa justificativa da intervenção do Governo, tem igualmente uma vertente judiciária, e é esta última que torna manifesto não estarmos perante um cargo meramente administrativo estritamente dependente da confiança política do Governo.

Assim, o estabelecimento dum limite temporal certo para o mandato do Procurador-Geral da República clarificou a razão de ser da forma da respectiva nomeação. No fundo, uma nomeação resultado de verdadeira opção conjunta do Governo e do Presidente da República.

A legitimação política do cargo garante-lhe, enquanto órgão singular, total legitimidade para dirigir a actuação funcional dos magistrados do Ministério Público, como cabeça da respectiva hierarquia.

Ao Procurador-Geral cabem poderes limitados na área da gestão dos magistrados, a qual é própria do Conselho Superior do Ministério Público. Mas, em contrapartida, apenas ao Procurador-Geral caberá “dirigir, coordenar e fiscalizar” a actividade do Ministério Público – ou seja, dirigir o exercício das respectivas funções por parte de todos os magistrados.

A questão do exercício dos poderes hierárquicos próprios do Procurador-Geral da República assume porém características algo específicas. Não apenas devido ao grau de autonomia individual que é conferido por lei aos magistrados do Ministério Público, mas também por força da sua organização “descentralizada” e da existência de hierarquias intermédias consabidamente apanágio desta magistratura.

Importa pois que a acção do Procurador-Geral da República, no tocante à direcção da actividade do Ministério Público, se concentre nas tarefas de superior fiscalização da mesma e de uniformização de procedimentos a seguir pelos magistrados. Em termos tais, que será nas áreas em que o Procurador-Geral tenha previamente formulado orientações, susceptíveis de se sobreporem à liberdade de organização e decisão, dos seus subordinados, que se deverá fazer sentir, como regra, o peso dos poderes de superior direcção do Ministério Público que lhe estão confiados. E isto nem sempre é correctamente entendido.

Caros colegas, tenho este ano redobradas razões para terminar dirigindo-me a todos vós.


Existimos vai para mais de 170 anos, dificuldades não nos têm faltado e soubemos sempre vencê-las.

Insisto pois.

Há um vento que nos sopra e que é de verdade.

Há um porto para onde nos dirigimos sempre, que é o da Justiça.

E se isso não é tudo é pelo menos o mais importante.

Fonte: PGR

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